Valdeblan Siqueira Galindo Viana*
Como auditor fiscal, tenho refletido sobre as implicações éticas de minha profissão e compartilhado essa reflexão com meus colegas de trabalho. Dessas discussões, surgiu o interesse pelo tema que relaciona Ética e Administração Tributária, como organização que abriga tanto objetivos públicos quanto pessoas com seus respectivos fins privados, dando origem a diversos conflitos de interesses.
Grupos politizados, comunidades organizadas, imprensa comprometida com o avanço e com a consolidação da democracia, diferentes segmentos sociais, econômicos, e até mesmo sindicatos de categorias de trabalhadores, articulam-se e influenciam a reflexão e a produção do mundo acadêmico. Com efeito, torna-se indispensável, para a elevação do nível moral da sociedade, a participação dessas distintas organizações sociais, uma vez que estamos no tempo das responsabilidades e não só das exigências.
Com efeito, em qualquer lugar, é possível encontrar alguém discursando sobre ela como um verdadeiro especialista. Na prática, esse saber ético não passa de um discurso vazio de eficácia social. Talvez por isso se faça necessário anunciar sua ausência, ou melhor, sua quase inexistência, no mundo dos fatos, revelando quão carente de ética encontra-se nossa sociedade.
Dessa forma, qualquer análise sobre ética deve levar em conta a problematização da ausência de seu objeto. No entanto, nossa proposta não é refletir sobre uma ética volátil, metafísica, mas a respeito de uma ética prática associada a uma atividade profissional importante para a Administração Pública, como a auditoria tributária, socialmente estigmatizada por práticas de corrupção, cuja divulgação acaba levando a opinião pública a crer que elas são freqüentes, corriqueiras, e a atribuir, de forma genérica e leviana, a pecha de corrupto a todos os servidores do Fisco. Isso, como veremos, é um lugar-comum que não corresponde à realidade.
Esse é um tempo no qual a sociedade exige transparência das atividades públicas, políticas e administrativas e também daquelas atividades privadas que tenham repercussões públicas, a fim de que correspondam às características e às propostas democráticas que articulam ética e direito. Nesse sentido, as relações entre a ética e a Administração “são, em certas ocasiões, realmente problemáticas. Com o fim de evitar a confusão que pode acarretar a conexão dessas noções, impõe-se uma reflexão sobre a natureza moral da atividade administrativa.”
Moral vivida: minha experiência
Como cidadão brasileiro, tenho sistematicamente acompanhado pelos meios de comunicação desde a falta de respeito aos princípios éticos mais elementares até os graves atos de corrupção, revelados de forma difusa, seja na prática profissional dos servidores da Administração Pública, seja na prática dos agentes políticos dos diferentes poderes, esferas ou níveis de governo, ocorridos em meu país e em outros, com um nível maior de interesse para os países ibero-americanos.
Como agente do Fisco do Estado de Pernambuco, deparo-me com situações das quais emergem dilemas éticos de natureza e complexidade diversas, muitos dos quais são próprios do exercício da função e que se somam a um elemento cultural bastante arraigado, que chamamos de jeitinho brasileiro, vil, por sua normalidade aparente, e degradante, tanto para os integrantes do Fisco como para qualquer outro segmento da sociedade brasileira.
Dentre essas situações, podem ser mencionadas, como exemplo, as seguintes:
a) práticas de suborno;
b) corrupção ativa (os que subornam) e passiva (os subornados);
c) práticas de extorsão;
d) intimidação;
e) oferta de presentes segundo os cargos ocupados;
f) tráfico de influência;
g) arbitrariedade;
h) excesso de rigor;
i) tratamentos diferentes para o contribuinte, segundo sua importância econômica, filiação partidária ou amizade pessoal;
j) eventuais tentativas de ingerência política durante ações fiscais e outras práticas que denigrem a imagem do Fisco e de seus profissionais.
Desde minha experiência pessoal, constatei que a simples existência de lei proibitiva dessas práticas é insuficiente para garantir que os controles jurídicos sobre a prática profissional dos servidores públicos sejam efetivos, particularmente na categoria profissional à qual pertenço, em razão das dificuldades na apresentação de provas materiais relacionadas com a manifestação fenomênica de tais ilícitos. Daí minha convicção e motivação pessoal de dedicar tempo à investigação desses fatos, acrescentando uma perspectiva ética a essa análise, como demonstração de compromisso (moral) com a instituição a que sirvo profissionalmente.
A ética exige o abandono de posturas egoístas, voltadas a interesses exclusivamente individuais, e reclama uma maior sensibilidade das pessoas com o meio que as rodeia. Exige também a capacidade de ir além da pura indignação, cobrando dos cidadãos valores como liberdade, consciência e responsabilidade. Nesse sentido, e guardadas as devidas proporções, repito aqui a fórmula consagrada por Ortega y Gasset, em algum momento de sua vida: “Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella, no me salvo yo”5.
No curso de minha experiência profissional – particularmente durante os anos de 1997 e 1998, enquanto exerci o cargo de diretor de um departamento regional de fiscalização, vivenciei, e quiçá tenha protagonizado, situações que puderam revelar, alternada ou simultaneamente, a presença e a ausência de virtudes morais. A partir dessa experiência, constatei que o juízo de valor que se costuma fazer acerca do comportamento dos demais, quando adequado, atua como fator de discernimento nas relações interpessoais estabelecidas dentro das organizações ou instituições. Da mesma maneira, se tal juízo de valor for inadequado, pode gerar graves preconceitos e prejudicar, seriamente, essas mesmas relações.
Assim, no julgamento de uma ação praticada por determinado agente, o julgador poderá ser influenciado por um prévio juízo de valor acerca daquela pessoa. Um julgamento superficial e precipitado poderá surpreender quem o realizou, quando se constatar a incidência de fatos que fujam, para bem ou para mal, ao comportamento eticamente esperado. Em outras palavras, a eventual realização de atos virtuosos – sem a constância exigida para a caracterização da virtude – por pessoas tidas pelo grupo profissional como não-éticas ou, ao contrário, a negação da virtude – também, da mesma forma, por meio de atos ou atitudes viciosas isoladas – por aqueles que gozam de reputação ilibada, poderão funcionar como questionamentos dos preconceitos teóricos e das posições dogmáticas facilmente assumidas.
Pode-se recordar, aqui, o dito popular uma andorinha só não faz verão – atribuído a Aristóteles – como uma forma de demonstrar a necessária regularidade de atos virtuosos como pré-requisito fundamental para a caracterização de uma vida ética. Com efeito, na visão aristotélica, nós nos transformamos naquilo que praticamos com freqüência.
Dessa forma, conclui-se que ninguém pode ostentar, de forma absoluta, a posse do bem ou do mal, e que tampouco uma conduta calcada sobre determinados valores pode garantir uma vida permanentemente ética. Faz-se necessário relativizar, então, todo (pré) conceito que pretenda identificar e definir, de forma definitiva, qualquer pessoa como ética ou não-ética.
Fixado o norte a ser seguido neste estudo, e tendo em vista o alerta da influência de juízos valorativos prévios, apresento, a seguir, algumas situações práticas, efetivamente vividas, por seu valor pedagógico. As duas primeiras exemplificam condutas éticas, enquanto as três últimas revelam condutas nada virtuosas:
a) “A”, auditor, ao constatar o transporte de mercadorias sem a devida regularidade fiscal, abordou o contribuinte, exigindo o imposto correspondente àquela operação. O contribuinte, por sua vez, depois de apresentar, sem êxito, por infundadas, suas razões, tentou subornar o servidor com uma oferta em dinheiro. Segundo declaração de outros auditores que presenciaram o fato, o autuante recusou a oferta, frustrando o contribuinte, que não teve outra saída senão pagar o imposto devido. Uma vez regularizada a situação com o pagamento do tributo, o referido auditor fez questão de dirigir-se ao contribuinte com o seguinte comentário: “Parabéns! você acaba de pagar o salário de dez professores.”
b) Um grupo de fiscais abordou um caminhoneiro que transportava grande quantidade de mercadorias de importante valor comercial. Ao ser informado da autuação, e diante da hipótese de pagar imposto e multa, o proprietário telefonou para um dos autuantes e propôs-lhe uma significativa soma em dinheiro para que não o autuasse legalmente e para que liberasse a mercadoria imediatamente. Diante da proposta que lhe foi feita, o auditor, em tom de brincadeira, mas com bastante firmeza, contactou imediatamente o seu coordenador, pedindo-lhe que adotasse imediatamente as providências administrativas aplicáveis ao caso, uma vez que estava em jogo um importante valor econômico, e que já havia recebido indecentes e tentadoras propostas, podendo “não resistir àqueles encantos, caso o contribuinte insistisse com ofertas tão generosas quanto aquelas”.
c) Um servidor antigo, com o propósito de orientar eticamente outro servidor em estágio probatório, confidenciou-lhe:
Não gosto de fazer uso do cargo para fins pessoais. Outro dia, estive num centro comercial acompanhado de minha família. Ao chegarmos a uma loja, neguei-me a efetuar uma determinada compra em face da exorbitância do preço da mercadoria. Manifestei meu descontentamento ao vendedor. Ao saber ‘quem eu era’, consultou seu superior e, ‘espontaneamente’, presenteou-me com a mercadoria. Mas eu mesmo não lhe pedi absolutamente nada.
d) Um servidor recém-ingresso que ouviu um colega de trabalho mais experiente dizer algo mais ou menos assim:
Para meus gastos pessoais, quase nunca necessito lançar mão do meu salário. Todos os dias, vou trabalhar e levo para casa uma quantidade de dinheiro que, no final do mês, corresponde aproximadamente a um valor igual a meu salário. E para isso não necessito me corromper. Bastam ‘as gorjetas’ de alguns contribuintes.
e) Um servidor ocupante de cargo de chefia que, ao receber uma denúncia de iminente ocorrência de típica corrupção passiva, e impossibilitado de provar os fatos de modo a permitir a adoção das correspondentes medidas administrativas, lançou mão da convergência de seu credo religioso com um dos prováveis infratores, com quem conversou, evitando que o delito se concretizasse.
Em relação a este último exemplo, importa esclarecer, sem desmerecer a conduta do referido chefe, que iniciativas de natureza religiosa afiguram-se irrelevantes, em face da sua aplicabilidade restrita, que supõe a comunhão de credos. Dessa forma, como seriam tratadas as hipóteses que envolvessem pessoas de distintas confissões religiosas, e como se daria sua fundamentação e convencimento?
Uma indagação que nos conduzirá, oportunamente, ao imperativo estabelecimento de uma ética pública que não seja fundada em razões morais e religiosas tão particulares. Não se trata, todavia, de negar a religião. Entretanto, sua existência e apoio deverão estar baseados na pluralidade, na tentativa de superação da intolerância, e fundados numa concepção da justiça construída sobre um amplo consenso social.
Evidentemente que os exemplos de condutas não-éticas aqui expostos não esgotam os atos dessa natureza. A objetiva dificuldade de tratar esse tema no âmbito de seu planejamento e de sua execução tem de ser considerada, uma vez que esses atos geralmente são praticados entre quatro paredes, por pessoas interessadas em burlar a lei, o direito e, por conseguinte, o princípio básico da transparência pública. Seu conhecimento torna-se público como derivação de seus efeitos indiretos, resultantes de investigações posteriores ao próprio ato de corrupção.
Apesar da ingenuidade dos exemplos aqui apontados, seja pela insignificância dos valores implicados, seja pela alegação de ausência de intencionalidade dos praticantes dos ilícitos mencionados, creio que sua maior gravidade reside na naturalidade com que são apresentados, como se representassem algo intrínseco ao exercício da profissão. O que dizer, então, dos ilícitos mais graves, que correspondem, via de regra, a escândalos de grande repercussão social.
Com efeito, na formulação de questões relativas à corrupção de agentes públicos, os ilícitos de pouca expressão econômica acabam deixando de merecer a devida atenção, em virtude do forte apelo daqueles ilícitos economicamente significativos. Acontece que esses inexpressivos ilícitos apresentam uma expressiva ocorrência, proporcionando uma série de vantagens pessoais indiretas a quem os pratica. Tal dado de realidade não deve ser desprezado, e esses singelos atos de corrupção devem ser tratados com a mesma seriedade com a qual os grandes ilícitos deveriam ser tratados.
Diante dessa realidade, cumpre indagar sobre o sentimento de impotência vivido pelo cidadão comum, bem como o de revolta, ante a impunidade revelada pela quantidade de casos de corrupção que não foram esclarecidos e/ou punidos. Assim, nas sábias palavras da professora Adela Cortina, tem-se a impressão de que, debaixo da agitada superfície da vida pública, vai-se formando um imenso “iceberg, que algum dia provocará o afundamento da convivência em não se sabe que escuro Mar dos Sargaços, em não se sabe que brumoso Finis Terrae”.
(continua…)
Extraído do livro Ética e Administração Tributária
VALDEBLAN SIQUEIRA GALINDO VIANA é Auditor Fiscal de Tributos de Pernambuco É doutor* pela Universidad Autonoma de Madrid, UAM, Espanha. É professor da Faculdade dos Guararapes. Autor do livro “Ética e Administração Tributária”
*Título: Ética y Deontología en la Administración Tributária, Ano de Obtenção: 2002.