Antônio Sérgio Valente
Na primeira noite, eles se aproximam / e roubam uma flor / do nosso jardim. / E não dizemos nada. / Na segunda noite, já não se escondem: / pisam as flores, / matam nosso cão, / e não dizemos nada. / Até que um dia, / o mais frágil deles / entra sozinho em nossa casa,/ rouba-nos a luz, e, / conhecendo nosso medo, / arranca-nos a voz da garganta. / E já não podemos dizer nada.
Extraído do poema No Caminho, com Maiakóvski, de Eduardo Alves da Costa (publicado pela Geração Editorial, 2003).
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Alguns entes do governo vêm tornando públicos os vencimentos dos seus servidores. Enchem a boca ao dizer que isso é transparência. Parte da mídia e até de constitucionalistas afamados têm defendido essa postura, embora ao arrepio da Constituição Federal, que em seu art. 5º, caput, garante que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. E a CF é ainda mais específica nos incisos X e XII do referido artigo, ao garantir a inviolabilidade da vida privada, bem como o sigilo da correspondência.
Ora, se todos são iguais perante a lei, por que só o servidor é obrigado a permitir que violem o seu holerite e a sua vida privada? Em qual parágrafo de qual artigo da CF (lei inconstitucional não vale) está escrito que o servidor público vale menos que os demais cidadãos? Em qual edital de concurso está escrito que o cargo implica em abrir mão da privacidade? Em qual edital está escrito que o serviço público é um Big Brother qualquer da vida?
E se violar holerite é o mesmo que violar correspondência — vale dizer, é crime — por que só a correspondência do servidor público pode ser violada impunemente?Se até os holerites disponíveis por correspondência virtual carecem de senha de acesso, justamente para preservar a inviolabilidade da vida privada e o sigilo do conteúdo, por que os dos servidores públicos seriam diferentes?
Por acaso a CF foi emendada? Foi inserida uma exceção?
Ou será que já estamos vivendo num regime de exceção?
O servidor público, ao contrário do que alguns inimigos do funcionalismo propagam, não é contra a transparência contábil do Estado, em todos os níveis. Pelo contrário, em vários artigos aqui publicados, temos defendido o princípio de que o orçamento deve ser o mais aberto possível, incluindo despesas com pessoal e previdenciárias, por cargo, função, nível, etc., mas isto pode ser feito sem violar a CF e sem causar constrangimentos. Já reivindicamos inclusive que pagamentos através de cartões corporativos sejam apontados por servidor/órgão/secção/rubrica, pois estes representam despesas e não vencimentos. E fomos mais longe ainda: queríamos saber quanto custa, por exemplo, a Casa Civil de cada governo (federal, estaduais e municipais), conta por conta, seção por seção, vinho por vinho, familiar por familiar. Pois não é só de salários que vivem os marajás, mas também de todos os privilégios e mordomias que os cercam.
E agora vamos mais longe ainda: gostaríamos muito de saber quantos motoristas estão à disposição de cada governante e de seus familiares; quantas cozinheiras, lavadeiras, cabeleireiras, costureiras, manicures e arrumadeiras prestam serviços aos políticos que passam pelos tronos, aos seus familiares e sequazes; quantos alfaiates, personal trainers, seguranças, mordomos, pilotos e assessores, em geral não concursados, gravitam em torno dos marajás que ocupam os palácios dos governos; e quantos veículos — automóveis, motos, helicópteros, aviões, barcos até — são necessários para locomover toda essa trupe. E mais: quantos ternos, camisas, gravatas, abotoaduras, broches e vestidos são comprados para cobrir a nudez dessa entourage. E, claro, gostaríamos muito de saber o custo de tudo isso. Pois não é só de salários que vivem os marajás, mas também dos leques que os abanam.
Afinal, é do bolso do público — dos impostos embutidos nos preços das mercadorias, nos lucros das empresas e nos salários dos trabalhadores — que provêm os recursos para fazer frente a tais despesas.
É essa a transparência que a sociedade e o funcionalismo público querem ver, pois é ela que vai indicar se há ou não marajás esbanjando o que se arrecada.
Mas a transparência que está aí — a mera lista de vencimentos dos servidores — não passa de arremedo do que a sociedade pleiteia. É uma cortina de fumaça encobrindo o que se pretende ocultar. Não serve para nada, exceto para constranger individualmente os servidores de bem, indispor uns contra outros e contra a sociedade. Divulga o que já se sabia: que parte dos servidores públicos têm remunerações aviltantes, muito aquém da que percebem os similares da iniciativa privada e os marajás de verdade. E mesmo as carreiras do topo da lista, as que exigem mais formação, conhecimento e responsabilidade, sobretudo as das funções típicas do Estado, estão muito distantes dos marajás de que tanto se fala, ganham menos do que a maioria dos gerentes de área e diretores administrativos que circulam por aí.
Por exemplo, um Agente Fiscal de Rendas de São Paulo — que prestou dificílimo concurso; que tem conhecimentos excepcionais; que está no topo do mercado de trabalho; que tem de ser muito competente e corajoso para enfrentar, no dia a dia, empresários, diretores de empresas, controlers e tributaristas de altíssimo nível; que tem de descobrir fraudes não raramente engendradas com exímias arte e manha — quando está no ápice da carreira, nível VI, com mais de 30 anos de trabalho, experiência e perspicácia, ganha no máximo R$ 18.750,00 brutos, mas se deduzidos IR, IAMSPE, Previdência e plano de saúde da categoria (pois não se pode contar com o IAMSPE), recebe apenas R$ 10.300,00…! Menos, portanto, do que um auditor sênior da iniciativa privada. Dependendo da empresa, menos até do que um auditor pleno. E muito menos — nem se fale…! — do que um daqueles profissionais que engendram as fraudes ou que as defendem, os que comandam as empresas ou advogam para elas.
E que ninguém se iluda com eventuais valores publicados acima desses limites, pois em geral se referem a reposições de produtividade de meses anteriores, a antecipações de férias e 13º salário. Portanto, não há nada de absurdo nos holerites. Pelo contrário, embora divulgados inconstitucionalmente, demonstram que os servidores estão muito longe do que seria adequado para os graus de responsabilidade e competência que lhes são exigidos.
De modo que não é a publicação do holerite que mais magoa e incomoda o servidor público; é o próprio holerite. A publicação o irrita não pelo conteúdo, mas pelo constrangimento, pelas mazelas que objetiva tapar com cortina de fumaça, e, sobretudo, pela discriminação, por saber que está sendo tratado como cidadão de segunda classe, com menos direitos do que os demais, com a privacidade escancarada e a correspondência violada ao alvedrio do governante, que rasga a Constituição Federal sem o menor pudor.
E que as palavras do poeta, citadas na epígrafe, não caiam no esquecimento. Hoje, são os incisos X e XII do art. 5º, caput, da CF, que estão sendo impunemente violados, por meio de uma exceção tolerada pela consciência de alguns, pois pimenta nas hemorróidas do vizinho é carinho; mas amanhã, outros cidadãos serão incluídos nesta ou em outras exceções; até que um dia, quando as coisas ficarem insuportáveis, quando for preciso erguer a voz para dizer basta, talvez já não a tenhamos. Pois é assim que os regimes de exceção começam, e é assim, invariavelmente, que terminam.
Voltaremos ao tema no próximo artigo.
ARTIGOS de ANTONIO SÉRGIO VALENTE
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