A reforma que nunca chega

Aos poucos, sem que ninguém perceba, está sendo revigorado o debate sobre a questão pendente da reforma tributária. É uma palestra aqui, um seminário ali, um congresso acolá, e por aí o tema volta à cena política do País. A rigor, nunca saiu de pauta, apenas ficou adormecido por uns tempos, aguardando a passagem do período eleitoral e o início do novo governo, e, pelo retrospecto, podemos estar certos de que o debate se estenderá ao longo dos próximos quatros anos do mandato presidencial, sem chegar ao fim. Vai haver muita discussão, propostas variadas, porém, tão cedo a reforma não será aprovada. O debate sobre a necessidade de uma reforma tributária começou logo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, e o mais interessante nisso é que, embora sempre tenha havido consenso sobre a aprovação da reforma, ela nunca saiu do papel nesses vinte e tantos anos. E não saiu por quê? Não saiu porque, no fundo, os principais atores políticos não querem: o governo federal não quer, os governadores dos maiores Estados não querem e muitos municípios grandes também não querem. E não querem por quê? O governo federal não quer porque não é de hoje que vem batendo sucessivos recordes de arrecadação de impostos, que aumenta mês a mês, e não para nem com as crises. Se está bom assim, por que mexer, então? A União tem em seu benefício a arrecadação de diversas contribuições sociais (PIS, Confins, Cide, etc.) que não são divididas com os Estados e municípios; com a reforma tributária, teria de repassar uma parte desses recursos. Então, é melhor ficar assim, sem reforma. Como se sabe, em time que está ganhando não se mexe.

Os Estados não querem perder a autonomia sobre o seu principal imposto, o ICMS. Como todos os projetos de reforma tributária elegem o ICMS como a questão central a ser resolvida, no início os governadores dos Estados mais fortes fazem de conta que concordam; afinal, pega mal ser contra uma reforma tão importante. Sem muito alarde, ao longo das discussões, incentivam suas bancadas no Congresso para boicotar o projeto. Os Estados mais pobres também não concordam; entretanto, adotam uma postura mais cautelosa e ficam de olho para ver se receberão mais recursos, caso a reforma seja aprovada. Como se vê, não há o menor consenso entre os Estados nesse assunto. Fala-se muito em acabar com a guerra fiscal, que ocorre principalmente, mas não exclusivamente, entre os Estados. Esse argumento já está desgastado, e há quem veja até um aspecto positivo na guerra fiscal, pois permite aos Estados disputar novos investimentos, mediante oferecimento de vantagens ao setor privado. Ainda que a reforma tributária proíba a concessão de benefícios de natureza tributária, não há como impedir que sejam dados incentivos financeiros para atrair novos empreendimentos.

Por último, há a situação dos municípios. Dentre o total de 5.564 existentes no Brasil, temos desde grandes metrópoles como São Paulo, Rio, Belo Horizonte, a pequenos lugarejos perdidos pelos grotões profundos deste imenso País. Não é preciso escrever muito para ficar claro que os interesses de uns não têm nada a ver com os de outros. Os de maior porte arrecadam agressivamente e estão com os cofres bem abastecidos; outros, os pequenos, vivem à mingua dos repasses de impostos federais e estaduais. Os pequenos municípios sempre serão favoráveis à reforma tributária, se isso significar mais repasses de verbas. Por sua vez, os grandes somente estarão de acordo se a proposta contemplar-lhes um aumento da sua fatia de competência para arrecadar mais tributos. Diante deste quadro desanimador, podemos imaginar como será difícil a aprovação de uma reforma tributária que atenda a todos os interesses envolvidos.

JOÃO FRANCISCO NETO

jfrancis@usp.br
Agente fiscal de rendas, mestre e doutor em Direito Financeiro (USP)

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One Comment to “A reforma que nunca chega”

  1. Correta a abordagem do colega, Dr. João Francisco Neto, sob o ponto de vista político. Apenas acrescentaria também que não há o mínimo interesse do empresariado em mexer na regressividade que o sistema tributário nacional hoje apresenta, bem como sequer quer ouvir falar em aumento do poder fiscalizatório das Administrações Tributárias, que seria necessário para combater a excessiva sonegação que retirar a eficiência do sistema tributário e tem consequências danosas de aumentar ainda mais a injustiça que o sistema em si já gera. Enquanto que na Europa o acesso ao sigilo bancário pela fiscalização, por exemplo, é lugar comum e aceito, aqui ainda temos, como uma verdadeira espada de Dâmocles sobre a cabeça do Fisco, as diversas ADI que repousam já há dez longos anos nos escaninhos do STF sem definição. Tudo isso por pressão do setor privado que reclama muito da tributação, da carga tributária, mas na verdade só age assim porque na verdade quer evitar uma reforma tributária verdadeiramente eficaz no sistema e manter tudo como está, onde o mais pobre tem sua renda comprometida em 48% com este sistema, enquando os mais ricos não passa de 26%. Portanto, está ótimo para a elite econômica que esta realidade continue, bem como os poucos instrumentos legais disponíveis às AT para uma fiscalização mais eficiente. Além disso, ao se alterar a tributação de impostos indiretos, como o ICMS, entendo que se tornaria imprescindível uma revisão não apenas da repartição do bolo tributário, mas da própria competência tributária, com um redesenho da repartição dos tributos, sendo desejável uma maior descentralização, principalmente para os Estados, que seriam os entes da Federação que mais sofreria o impacto de uma reforma que vise um sistema que resulte em uma tributação mais justa. Caso contrário, a autonomia dos Estados e o pacto federativo estaria seriamente atingido, pois ficar com o “pires na mão” atrás de repasses da União não é nada salutar, ainda mais tendo em vista o grande encargo de serviços públicos que são de responsabilidade dos Estados, bem como a trágica experiência que vem sendo a compensação pela União da desoneração do ICMS que fez das exportações dos produtos semi-elaborados e primários com o advento da Lei Kandir. Esta experiência não recomenda que os Estados embarquem novamente nessa canoa furada que é fazer cortesia com o chapéu alheio a espera de compensações da União.

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