João Francisco Neto*
Ouriço, para quem não sabe, é um bicho parecido com o porco-espinho. Feito esse esclarecimento inicial, passemos ao que interessa. O filósofo inglês, de origem russa, Isaiah Berlin (1909-1997), ao publicar um livro sobre Tolstoi, resgatou um curioso ditado, que vinha da antiguidade grega: “A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma grande coisa”. No sentido literal, isso quer dizer que a raposa, um animal reconhecidamente astucioso, vale-se das mais ardilosas artimanhas e estratégias para tentar pegar um ouriço, que, na hora certa, encolhe-se todo, formando uma bola de espinhos, o que impede de ser capturado pela raposa.
Mas, Isaiah Berlin utilizou-se dessa figura para classificar escritores e pensadores em duas categorias: os ouriços, que são pessoas que têm a vida dedicada a único foco, e as raposas, naturalmente voltadas à diversidade de pensamentos e ações. Com o tempo, essa “classificação” estendeu-se para os mais variados campos da vida humana. Hoje, no mundo corporativo, os profissionais são divididos em ouriços e raposas, conforme, sejam mais “focados” e concentrados num só tema (os ouriços), ou multifacetados e aptos a se adaptar a qualquer situação (as raposas).
Em 2011, um dos maiores pensadores do direito anglo-americano contemporâneo, Ronald Dworkin (1931-2013), ao lançar um livro sob o título de “Justiça para Ouriços”, retomou esse tema, agora sob um viés jurídico-filosófico. Dworkin, embora fosse um jurista incomum – foi professor nas universidades de Harvard, Yale e Oxford -, ocupava-se de temas ligados ao dia a dia das pessoas, na medida em que publicava frequentes resenhas críticas sobre questões raciais, ações afirmativas, homossexualidade, aborto, liberdade de expressão, entre outros. Sua obra revelou-se tão importante a ponto de exercer forte influência na doutrina, na interpretação constitucional e nas teses argumentativas dos tribunais americanos e ingleses.
Por aqui, a relevância da produção doutrinária de Dworkin não foi menor, haja vista a sua enorme contribuição para o estudo das regras e princípios. Crítico do positivismo jurídico e da separação do direito e da moral, Ronald Dworkin realizou profundos estudos sobre o tema denominado de “casos difíceis” (hard cases), ou seja, as situações concretas postas em juízo, para as quais não haveria no ordenamento jurídico uma regra aplicável. Os “casos difíceis” também se configuravam quando houvesse mais de uma regra para o mesmo caso, ou, ainda, quando a solução do caso provocasse conflito com os costumes da comunidade.
Para o julgamento desses “casos difíceis”, abrir-se-ia um campo de discricionariedade para o juiz, que, então, ficaria livre para encontrar a solução que considerasse mais adequada.
Dworkin não concordava com esse entendimento e achava que, mesmo para os hard cases, o juiz, com sabedoria e paciência, haveria de encontrar a solução ideal, por meio de uma conjugação de regras, princípios e valores. Para ele, ao se deparar com uma situação de indeterminação da lei, o magistrado não poderia atuar como legislador, cabendo-lhe extrair a regra aplicável a partir da totalidade do sistema jurídico.
No seu livro “Justiça para Ouriços”, Ronald Dworkin deixa claro que a “coisa grande” – e mais importante – é o valor, retomando a antiga teoria da unidade do valor, a saber, a unidade dos valores éticos e morais, agora sob a perspectiva de temas centrais das modernas democracias, como a igualdade, a justiça, a liberdade, os direitos individuais, entre outros. Crítico da separação do direito e da moral, Dworkin apoiava-se na clássica argumentação de Santo Agostinho: “A lei injusta não é lei” (lex iniusta non est lex). Reconheço que esse assunto não é fácil de digerir, porquanto comporte muita reflexão, principalmente nestes tempos de poucos ouriços e tantas raposas espertas, à solta por aí; muitas delas, candidatas a qualquer cargo, seja na política, na administração, ou nas empresas. Obviamente, as mais matreiras sempre abocanham alguma coisa.
* Agente Fiscal de Rendas, mestre e doutor em Direito Financeiro (Faculdade de Direito da USP)
ARTIGOS de JOÃO FRANCISCO NETO
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