Francisco das Chagas Barroso
Um dia desses, dentro de um supermercado local, me deparei com um colega AFTE, o qual, sem me olhar, me cumprimentou com um ríspido movimento de cabeça. Imediatamente me ocorreram as lembranças dos tempos em que nos cumprimentávamos com um aperto de mãos, olhando nos olhos e falando sobre a família.
Irresignado, não com o colega, mas comigo mesmo, o indaguei acerca do que eu fizera para motivar aquela mudança de cumprimento. Logo percebi que o motivo de tudo era o fato de haver denunciado o governo do Estado de Rondônia no episódio da isenção das usinas.
Me pus calmante a ouvir o colega que me perguntava, quase aos brados:
Você é louco!! o que você ganha com uma atitude dessas? O governo vai passar por cima de você como um rolo compressor! Você é só um servidor!. Essa isenção era legal, foi acordada através de convênio, e, além disso, foi aprovada por lei. Injustiças, benefícios fiscais para patrocinadores de campanhas políticas sempre ocorreram e sempre vão ocorrer e não vai ser você que vai impedir!…
Lamentei a postura omissa do colega, compreensível, uma vez que ocupa um cargo no alto escalão do governo, mas até o agradeci pela sinceridade e por esboçar certa preocupação com a minha pessoa.
Por óbvio, naquele momento, no calor das palavras do colega, não quis justificar ou me estender no assunto, apenas deixando claro que a atitude fora tomada contra o governo inescrupuloso, e não contra algum servidor, em particular.
Hoje, embora reconhecendo minha escassa prática argumentativa, me permito responder aos seus questionamentos:
a) Você é louco! o que ganha com uma atitude dessas? O governo vai passar por cima de você como um rolo compressor. Você é só um servidor!.
O termo “rolo compressor” muito utilizado nas altas instâncias do poder, nem sempre ocorrendo no âmbito de uma relação verticalizada, se traduz na destruição sumária – seja de idéias, seja no contexto econômico ou político, ou não raramente, físico – do pequeno, pelo grande. Não existe argumento, choro ou clemência. Historicamente o grande sempre se sobrepôs ao pequeno; o vencedor ao vencido; a casa grande à senzala; o patrão ao empregado.
É bastante excepcional e circunstancial o pequeno vencer o grande – o cordeiro vencer o lobo – mas é possível.
Nossa cultura de realizações a troco de alguma coisa tem preponderado sobre ações desinteressadas e cidadãs. Por vezes, a própria corporação e a sociedade em geral, movida por sentimentos reacionários taxam de “louco”, “subversivo” quaisquer atitudes que destoem do senso comum. Acredito na abordagem platônica de que a subversão (pelo menos no campo das idéias) é a mãe de todos os avanços da sociedade.
O servidor público não é servidor do governo, mas sim, do ”público”, do “povo”. A relação hierárquica não deve ter vínculos de favores ou de conivência. A idéia de servidor subserviente ao governo é herança do coronelismo, já superado, mas que ainda mantém resquícios, principalmente nos porões insólitos dos governos corruptos. O Direito Administrativo hodierno rechaça a prática do servidor submisso aos caprichos e às vontades do gestor público, mesmo quando, aparentemente legitimadas pela fria lei, mas desprovidos de caros princípios, como o da moralidade administrativa.
b) Essa isenção foi acordada por convênio, e, além disso, foi aprovada por lei. Injustiças, benefícios fiscais para patrocinadores de campanhas políticas sempre ocorreram e sempre vão ocorrer e não vai ser você que vai impedir!
Nesse episódio, a semente da indignação tributária foi plantada e, a despeito de todas as adversidades, o cordeiro venceu o lobo.
Além da ilegalidade patente, por ferir a Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei 101/2000, a isenção em comento se revelava acintosamente imoral e não se sustentava nem mesmo pelo argumento de política fiscal de incentivo tributário, uma vez que as obras das usinas eram de destino certo, financiadas com recursos do PAC – governo Federal.
Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991, p. 111), sobre o mesmo tema:
Não é preciso penetrar na intenção do agente, porque do próprio objeto resulta a imoralidade. Isto ocorre quando o conteúdo de determinado ato contrariar o senso comum de honestidade, retidão, equilíbrio, justiça, respeito à dignidade do ser humano, à boa fé, ao trabalho, à ética das instituições. A moralidade exige proporcionalidade entre os meios e os fins a atingir; entre os sacrifícios impostos à coletividade e os benefícios por ela auferidos; entre as vantagens usufruídas pelas autoridades públicas e os encargos impostos à maioria dos cidadãos. Por isso mesmo, a imoralidade salta aos olhos quando a Administração Pública é pródiga em despesas legais, porém inúteis, como propaganda ou mordomia, quando a população precisa de assistência médica, alimentação, moradia, segurança, educação, isso sem falar no mínimo indispensável à existência digna.
A sociedade ainda não mensurou a importância das questões tributárias. Os tributos recolhidos do povo ao povo pertencem. O chefe do Executivo é apenas o delegatário da chave do cofre da fazenda do povo, que deve bem gerir esses recursos. Nesse aspecto, qualquer isenção ou outro benefício que implique em renúncia de receita deve se submeter à autorização do povo pela via legislativa e se sustentar pela moralidade, além das outras imposições constitucionais e legais, como a existência de Convênios.
Nesse aspecto, o tamanho da indignação pela entrega (deixar de receber) irregular, de valores da fazenda pública que pertence ao povo, deve ser tal qual a de um furto ou roubo feito ao patrimônio pessoal do cidadão, por terceiros.
É muito comum, governadores concederem benefícios fiscais inconstitucionais e ilegais, muitas vezes, sem nem mesmo atenderem à exigência de convênios, e o que é mais grave é que são raras as atitudes por parte dos cidadãos no sentido de tentar impugnar tais atos, na justiça.
Injustiças sempre ocorreram e sempre irão ocorrer, entretanto, almas indignadas também sempre irão existir, em confrontos, geralmente inglórios, quixotescos, excepcionalmente exitosos, mas que certamente contribuirão para o processo civilizatório da sociedade.
Governos passam, servidores ficam! Embora as tempestades tributárias também passem, espíritos inquietos, longe do fácil conforto, sempre estarão sujeitos às intempéries, mas nunca baixarão suas cabeças às injustiças.
Quando a tempestade passar, espero um dia poder reencontrar o colega AFTE do supermercado, com a mente mais arrefecida, e, como no passado, apertar sua mão, olhar nos olhos e conversar sobre a família.
FIM
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