As excelências

João Francisco Neto

O povo brasileiro é conhecido no mundo todo pela alegria e informalidade no trato pessoal. Há, contudo, um aspecto cultural que, inexplicavelmente, sobrevive entre nós: a excessiva formalidade dos pronomes de tratamento dedicados às mais diversas autoridades e categorias profissionais. São as Vossas Excelências, os nobres deputados, etc. Esse assunto retornou à imprensa porque uma lei recente alterou o manual de protocolo da Presidência da República para dispor que os delegados de polícia agora também farão jus ao tratamento de “Vossa Excelência”, assim como os juízes, promotores e demais membros dos poderes Executivos e Legislativo. As demais “autoridades” devem ser tratadas de Vossa Senhoria.

Desde logo qualquer cidadão já percebe a banalidade dessa questão, ainda mais quando todos sabemos dos sérios problemas que assolam o País e afligem a população; em termos mais diretos: tanta coisa importante a ser feitas, tanto s problemas a serem superados, e o Legislativo se ocupando de regras de tratamento para “autoridades”. O Brasil, no papel, é uma república, porém toda essa discussão de pronomes de tratamento afronta o principal fundamento republicano que é o da igualdade das pessoas.

Por aqui, existem os mais iguais. E de onde vem isso?

Vem de uma transição mal feita da monarquia para a república. Em quase todos os países que viveram sob o regime monárquico, a era republicana só foi alcançada com muita luta e participação popular; no Brasil a república chegou por meio de um acordo entre as elites, e, salvo um ou outro grupo descontente, não houve muito envolvimento popular. A crônica da época registra que no dia 15 de novembro de 1889, quando a república foi proclamada, o povo ficou sem saber o que se passava; apenas via grupos de senhores bem vestidos, desfilando pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro, acompanhados por militares de alta patente. Espalhada pela imensidão do vasto território brasileiro, a população demorou muito para se dar conta de que a república havia sido proclamada. A bem da verdade, até hoje muita gente nem sabe bem o que é uma república.

O fato é que, com ou sem república, os cidadãos das camadas mais privilegiadas trataram de assegurar para si próprios privilégios que vigoravam na monarquia, e, dentre eles, os pronomes de tratamento. Para o povo em geral reservou-se, quando muito, o tratamento de senhor, senhora e Vossa Senhoria; já para as “altas autoridades” a lei exige que se reporte a elas com os tratamentos específicos, como Vossa Excelência, Vossa Magnificência (para os reitores), Vossa Excelência Reverendíssima, etc., a demonstrar que essas pessoas NÃO são iguais às demais do povo. Nada mais anti-republicano.

Nos Estados Unidos não se utilizam essas formas de tratamento para nenhuma autoridade. Lá o presidente da República é tratado por senhor Presidente; um juiz de direito é tratado por “juiz fulano”, pois o termo juiz (judge, em inglês) já é o seu título. Aqui no Brasil o correto seria que todos, autoridades ou não, fossem tratados por senhor ou senhora, apenas; todo o resto constitui um privilégio fora de época e sem nenhuma justificativa. O mais lamentável nisso tudo é que certas “autoridades” não só não conseguem enxergar o anacronismo e a falta de fundamento de justiça que perdura nesses tratamentos protocolares, como exigem serem tratadas assim.

Não há muito anos, vimos pela TV o curioso caso de um magistrado da cidade de Niterói que exigia ser chamado de doutor pelo porteiro do edifício em que residia. O porteiro recusava-lhe o tratamento diferenciado e reportava-se ao juiz pelo tratamento de senhor. O juiz, descontente e sentindo-se desrespeitado, levou o caso à Justiça. Veja-se a inutilidade de tudo isso, principalmente num país assolado pela pobreza, pela falta de educação (dentro e fora de casa), pela criminalidade, que aumenta dia a dia, pela corrupção, que segue firme e forte; e por uma saúde pública para lá de precária. É justamente nesses quesitos que o povo quer ver a excelência.

jfrancis@usp.br

* Agente Fiscal de Rendas, mestre e doutor em Direito Financeiro (Faculdade de Direito da USP)

ARTIGOS de JOÃO FRANCISCO NETO

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11 Comentários to “As excelências”

  1. Excelente artigo, meu caro João Francisco Neto !. Você não é apenas doutor pelo título que conquistou através dos estudos acadêmicos concluídos ao longo de sua vida, mas, também é doutor naquilo que pensa e escreve com muita propriedade. Aliás, você e o Antonio Sergio Valente destacam-se entre os profissionais, formadores de opinião, a quem me curvo com muito respeito e admiração. Na minha opinião, determinadas autoridades que fazem questão de serem tratadas pelos pronomes pessoais de relevância e destaque, assim o fazem por uma questão de querer ser desigual, querer ser diferente, ou até mesmo por uma questão de querer mostrar que são superiores ao seu próximo e que estão acima do nível intelectual da maioria dos cidadãos brasileiros, membros de uma sociedade fundada em bases proletariadas, por consequencia do próprio sistema político implantado em um governo já nascido com restrições sociais e públicas desde a implantação do regime republicano em 1989. A verdade é que a grande maioria do povo brasileiro ainda não sabe distinguir o verdadeiro sentido gramatical dos pronomes de tratamento “Excelência” e “Senhoria” e, assim, poder-se-há dizer que o coletor de lixo pode ser chamado de vossa Excelencia e o Delegado de Polícia, ser chamado simplesmente de Senhor, pois no ápice do exercício de suas funções é assim como se sentem, o Senhor delegado e sua Excelencia, o coletor de lixo. O pior de tudo isso, é que o poder legislativo deveria se preocupar com a implementação de melhorias na educação, na segurança pública, na saúde pública, no transporte público e na habitação, ao invés de ficar fazendo leis em atendimento a determinados seguimento classista de servidores públicos, que no fundo mesmo adoram ser chamados de “senhor” no exercício de suas funções.

    • Prezado Sebastião:
      Publicar textos neste blog é sempre muito interessante porque, além de contarmos com um grupo de leitores de alto nível intelectual, sempre recebemos a inestimável colaboração dos comentários que, como o seu, acrescentam muito à proposta inicial.
      O que eu procurava apontar nesse pequeno artigo é o fato de que muitas vezes aspectos triviais da vida cotidiana que, a princípio parecem de menor importância, acabam por nos revelar as profundas mazelas e deformações estruturais que afligem a Nação.
      Obrigado, Sebastião, por sua gentil atenção e por sua valiosa colaboração.
      Um grande abraço,
      João Francisco

  2. Corrigindo: (…)regime republicano em 1889(…).

  3. Nos idos da década de 70, com 18 anos de idade, na Unisantos, participava da AIESEC, quando fui conversar com o diretor da faculdade de outro colega para autorizar o uso do auditório para um evento nosso. O jovem diretor se ofendeu quando, na conversa, mencionei “você”, gastando alguns minutos para exigir ser tratado de “doutor”. Sai dali sem entender a razão de tanta indignação. Este seu artigo, caro João Francisco, explica os reflexos e resquícios de uma pobre cultura tupiniquim.

    • Prezado Teo !
      Agradeço-lhe por todo o seu trabalho de compilação, edição, administração e monitoração deste espaço, em prol de toda a nossa classe de AFRs. Reconheço que se trata de um serviço que exige muita dedicação, observação, tempo, etc..
      De minha parte, agradeço-lhe, também, pela confiança depositada, ao sempre publicar os meus textos, que, na maioria das vezes, não guardam relação direta com as graves questões que afligem a nossa classe, as quais, sabemos bem, não são poucas.
      Quanto ao tema do artigo, infelizmente, podemos estar certos de que, infelizmente, continuaremos a nos deparar com lamentáveis fatos como esse que você nos relata aqui.. Isso vai continuar até o dia em essas pessoas se derem conta de quão ridículo é exigir determinado tratamento “diferenciado”.
      Um grande abraço, Teo !
      João Francisco

      • Prezado João Francisco,

        Grato pelo apoio e incentivo!
        É trabalhoso, mas a satisfação recompensa, em publicar artigos de colegas, pois sinto enorme carência na publicidade do conhecimento do grande celeiro intelectual de nossa categoria.

        Lembrei de outro episódio vivenciado por colega que esteve em audiência judicial, como testemunha de acusação, de AIIM. Descontraída, a colega, soltou um “você” para o juiz, que de imediato gastou alguns minutos para dar “lição de moral” dizendo que ele encarnava a Justiça e, portanto, deveria ser tratado por V. Excia….

        Forte abraço

  4. Elogiar os artigos do Dr. João Francisco da São Francisco é chover no molhado.
    Ele tem o dom de observar detalhes do comportamento social que à maioria das pessoas passam batidos e que têm extrema relevância, especialmente para os servidores públicos, que não raramente confundem o exercício da autoridade com autoritarismo.
    Creio que isso vem da nossa herança europeia, onde proliferavam reis (de microrreinos, digamos assim), principes, condes, viscondes, comendadores, títulos de uma nobiliarquia que já quase não existe mais, embora ainda persistam umas descedentes vaidades. O Imperador, da novela Império, que salvo engano também é comendador (assisti a um ou outro capítulo), que o diga.
    Por aqui, além desses títulos nobiliárquicos importados da vaidade alheia, temos os coronéis do Norte e Nordeste, os doutores sem doutorado, e os vossas-excelências do artigo ora comentado.
    São de certa forma títulos de “nobreza”, como se a nobreza se medisse pelo título e não pelo caráter de quem o porta.

    Na nossa carreira a carteirinha funcional também é ou pelo menos foi uma espécie de título. Alguns colegas, inclusive eu no início da carreira, colocavam-na numas carteiras de couro com o brasão de São Paulo, para realçar o poder da “otoridade”… rsrs.
    Quando entrei alguns colegas levavam essa carteira pendurada no bolsinho superior frontal do paletó, para que ficasse bem visível, feito um crachá nobiliárquico, ou pior, feito uma carteirada ostensiva e intimidadora. Alguns, além da carteira-crachá levavam na algibeira um revólver… rsrs. Não era à toa que os contribuintes sentiam desinterias logo após a chegada do Fisco.
    Isso até parece ficcção, mas é a mais pura verdade, houve um tempo em que foi assim, e eu vivi um pedacinho desse tempo; era novo em folha, tremia mais que o contribuinte… rsrs.
    Felizmente, tive a sorte de receber um ensinamento precioso logo no dia da posse, numa breve e inesquecível palestra de recepção conduzida pelo Albino Cassiolato, então Diretor da DEAT: — Vocês agora são autoridade, e autoridade não se impõe aos gritos, nem pela arrogância ou grosseria, mas pelo respeito rigoroso à lei.
    Obrigado ao autor por trazer essa reflexão e me permitir esse devaneio saudosista.
    E obrigado também ao Sebastião Viana pela menção ao meu nome com tamanha generosidade, a admiração é recíproca. Abraços aos dois.

    • Prezado Valente,

      Como já tive a oportunidade de escrever ao nosso colega Sebastião, publicar neste espaço é muito bom porque acabamos por obter um retorno que nos enriquece, como vem a ser o seu belo comentário, que nos traz aspectos históricos da evolução da carreira dos AFRs.
      Além disso, devo lhe confessar que eu, como tantos outros colegas AFRs, aprendemos muito a cada vez que você nos brinda com um dos artigos sobre IVA, Reforma Tributária, etc. Eu mesmo já publiquei alguns textos sobre esses assuntos, mas não são nada que se comparem com a riqueza e a densidade dos estudos que você tem tido a generosidade de compartilhar com todos nós.
      Um grande abraço, Valente, e agradeço-lhe sempre por sua gentileza.
      Abraços,
      João Francisco

  5. Retificando: embora ainda persistam umas DESCENDENTES vaidades.

  6. Aprecio muito os artigos de João Francisco. Captam situações importantes do cotidiano que muitas vezes não nos damos conta. Essa questão mesmo do tratamento remonta a uma época de autoritarismo, não obstante o caldo cultural que formou a sociedade brasileira, devedora da cultura europeia monárquica de séculos passados.
    E a questão é muito pertinente para a nossa classe de AFR. Vejo na SEFAZ um anacrônico sistema de castas dirigentes em que o fiscal da FDT se sente reprimido na sua função. Há muito melindre em prejuízo da autonomia do cargo. Há muito que se evoluir em termos de melhores e modernas técnicas de gestão no serviço público. Não fosse a remuneração um atrativo significativo, boa parte dos colegas já teria debandado para outros setores mais oxigenados.

    • Prezado João Tobias,

      Você observou muito bem, pois há no serviço público um ranço de autoritarismo que prossegue intocável; em algumas carreiras mais do que em outras. É óbvio que esse é um enorme entrave para a boa comunicação entre os servidores, que, de uma forma ou de outra, sentem-se constrangidos nas relações com as “autoridades” internas.
      Veja-se que certas “autoridades”, embora não exijam um tratamento diferenciado, na prática, são até chamadas de “doutores”. O pior de tudo isso é que nada aponta para qualquer mudança que possa vir a arejar esse clima subliminarmente hostil.
      Há algumas semanas publiquei aqui no BlogdoAFR um curioso artigo (“O Fetiche dos Cargos”), que, de certa forma, tem relação com o assunto sobre o qual agora tratamos.
      Agradeço-lhe por sua atenção e pelos comentários, João Tobias.

      João Francisco

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