As escolhas trágicas

João Francisco Neto*

…deve o governo arcar com os custos das obras para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos?

Um dos campos em que a Constituição Federal de 1988 mais inovou foi na introdução dos chamados direitos sociais. Todos podem conferir: o artigo 6º enumera uma extensa lista de direitos a que os cidadãos brasileiros passaram a fazer jus, a partir de 1988. São direitos das mais diversas naturezas:

direito à educação, ao trabalho, à moradia, à segurança, à previdência, à proteção da maternidade e à infância, à assistência aos desamparados, etc.

Porém, o fato de os direitos estarem assegurados na Constituição não quer dizer que eles, de fato, serão oferecidos à população. Todos nós sabemos que entre o papel e a realidade das coisas vai uma distância muito grande. Como diz ditado popular: o papel aceita tudo.Veja-se que esses direitos não são mais um favor do governante; ao contrário, são um dever. Daí que muita coisa que hoje é apresentada como uma “realização” de tal prefeito ou governador, na realidade, nada mais é do que sua mera obrigação. Para isso estão lá.

Mas, no meio do caminho de todos esses direitos existe um problema a ser superado, pois sua realização exige um custo, e, algumas vezes, bem alto. Para fazer frente à entrega desses direitos, que, muitas vezes, implicam enormes gastos, o Estado tem de arrecadar recursos (leiam-se tributos). Não é por outra razão que a carga tributária no Brasil atinge níveis tão elevados, e, ainda assim, todos já ouviram a mesma justificativa surrada:

Não há recursos para isso, não há verbas para aquilo.

O que fazer, então, para garantir a oferta de todos os direitos sociais previstos na Constituição? Como o povo já está praticamente no limite da capacidade (e da paciência) para pagamento de mais impostos, imagina-se, então, que os governos deveriam se contentar com os montantes que hoje são arrecadados.

Há tão pouco espaço para um aumento da carga tributária, que os governos não deveriam desperdiçar recursos, e, muito menos, desviá-los.

Nesse impasse, surge a figura das chamadas “escolhas trágicas”. Trata-se de um conceito criado por dois juristas americanos da Universidade de Yale, Guido Calabresi e Philip Bobbit, cuja síntese pode ser expressa da seguinte forma: quando se lida com recursos escassos, temos de fazer escolhas entre atender a uma necessidade e abandonar outra. Muitas vezes, essa escolha é muito difícil (ou trágica), porque ambas a áreas a serem atendidas são muito importantes, mas, ainda assim, somente uma será priorizada. Por esse critério pode-se ver que muitas dessas escolhas são trágicas apenas para algumas pessoas, que acabam prejudicadas; para outras, nem tanto. Um exemplo claro:

deve o governo arcar com os custos das obras para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, ou deveria utilizar todo esse dinheiro para atender melhor às vítimas das enchentes que até hoje sofrem?

O dever do governante sério e íntegro seria atenuar os efeitos das escolhas trágicas, elegendo sempre a opção que fosse de interesse para o maior grupo da população, sem, com isso, abandonar totalmente outras parcelas do povo. Isso não é fácil, principalmente se o governante estiver comprometido com os tais grupos que “apoiaram” a sua eleição. Na maioria das vezes, esse “apoio desinteressado” sai muito caro para o político eleito, que, no exercício do mandato, vê-se praticamente capturado por “forças ocultas”, que, na hora certa, surgem para cobrar o seu preço.

Já se vê que, quem de fato pagará esse preço, será o povo, que deixará de ser atendido, em virtude das chamadas escolhas trágicas que o governante terá de efetuar para saciar o apetite leonino de seus apoiadores. Infelizmente, isso continua acontecendo, e muito, por esse Brasil afora.

jfrancis@usp.br

*Agente fiscal de rendas, mestre e doutor em Direito Financeiro – Faculdade de Direito da USP

ARTIGOS de JOÃO FRANCISCO NETO

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