O lendário cavalo do secretário*

Carlos H. Peixoto

Era uma pessoa asinina, do signo de sagitário, metade gente metade cavalo. Se lhe chamavam pelo nome, o homem soltava fogo pelas ventas. Um dia, falou-lhe o Imperador das Minas:

— Tu vais para Brasília. Prepara-te, até o final do ano serás nomeado Secretário.

E foi assim que um rico proprietário de lavras, cansado da incompetência de seus trezentos assessores, resolveu nomear para Secretário da Fazenda um cavalo engravatado.

De todas as qualidades imagináveis em um cavalo, a esse nomeado Secretário só faltava relinchar, porque falar, ele já falava, como se habitasse uma fábula entre os homens. Relinche?

Ao contrário da música de Caetano “Vaca Profana”, poucos diriam que de perto o Secretário era um cavalo, de tão fino e educado que o elemento era no trato. Casado, esposa diabética e uma filha psicóloga, a primeira aquisição do novo Secretário, um mês depois de empossado, foram quatro ferraduras de prata.

Duas ou três vantagens de se ter por Secretário um cavalo: o cavalo come capim e não reclama. O cavalo dorme em cama de palha e não veste terno Armani. O cavalo não bebe Brahma.

O melhor do cavalo, em comparação com um bípede, não é que o primeiro seja mais fácil de ser domado por ser quadrúpede. Não. A diferença crucial entre o homem e o cavalo é que o cavalo não tem consciência do drama humano, do por que, do pra quê; muito menos o cavalo se pergunta por quem será montado — pelo menos enquanto o bicho está sendo arreado.

No Reino Teatral, já dizia Nelson Rodrigues, não é comum se dizer “vou montar o Boal”. Pega mal.

No Mundo Animal a coisa muda de figura, ainda mais quando o cavaleiro e a montaria são denominados pela literatura médico-científica por “seres humanos”. Dependendo das condições da estrada — se no caminho há valetas, mata-burros ou buracos —, o domador inexperiente pode ver-se em situação embaraçosa, na hipótese de o animal teimar em ir para um lado diferente do pretendido pelo cavaleiro. Daí a importância do Alinhamento Estratégico. Pra não banalizar o instrumento, o chicote só deve ser usado em situações extremas, e também pra não deixar o animal sem vergonha.

Um bom cavalo quase sempre fala a mesma língua de seu amo: o cavalês, idioma mais simples que o javanês, tão universal quanto o inglês, o que facilita a aproximação entre o Executivo e seus aliados, e até mesmo com os inimigos que pipocam dentro do Governo. Relinche? Vejam a novela do Senado, o compadrio de Sarney com Lula, de Lula com Renan e de Renan com Collor — até parece que os quatro cavaleiros sempre foram amigos, mamaram nas tetas da mesma rês pública desde criancinhas. Tudo depende das circunstâncias. Política é a guerra por outros meios. O que não pode, de forma alguma, é deixar de conversar, relinche?

O galope inicial. Nomeado e empossado, com o pelo escovado e os cascos aparados, o Secretário ocupou sua ampla e arejada baia central. No dia seguinte, bem cedo, levantou-se, escovou os dentes, ajeitou a gravata em frente ao espelho: estava mais bonito que cavalo de charrete. Depois, instalou-se em um monte de feno e pôs-se a pensar. Não era o cavalo do herói, não falava inglês, mas fora mais longe do que o avô Sansão, que só aprendera a relinchar três letras do alfabeto. Treinado pelo Gato-Mestre, o Secretário sabia relinchar as sete letras do IDGA (Instituto de Desenvolvimento Goela Abaixo): BSC e PDCA. Satisfeito com a própria posição, o Secretário levantou-se nas quatro patas, balançou a crina, fez uma careta e começou a trotar.

Pocotó. O Secretário gostou do que escutou, ao bater os cascos no assoalho do gabinete. Pocotó, pocotó, pocotó — ouvia-se o som do Secretário trabalhando. Devagarzinho, o animal ia pegando o jeito. Pocotó.Até que não é difícil comandar uma pasta, pensou. Em seguida, pegou uma folha em branco e emitiu seu primeiro ato administrativo, nomeando aquele que seria seu Homem do Chicote — feitor responsável pelo alinhamento estratégico de mil e quinhentos orelhudos, jegues, jumentos, cavalos sem estirpe e outros quadrúpedes.

Diplomados, encilhados e domados, era hora de colocar as alimárias pra pastar. O Secretário riu seu riso cavalar e estalou no ar um chicote enfeitado com bolinhas de aço: Shhlllllleeeepppp!

Vamulá!

E começou a correria, em busca da meta irracional.  Ninguém via nada, de tanta poeira. Nenhum animal ouvia o semelhante, sequer olhavam-se nos olhos, no máximo davam um “bom dia”, o dia inteiro de orelhas abaixadas, cabeças atoladas nas baias, pra não interromper a concentração dos cascos digitando ao mesmo tempo. Um assessor especial de porra nenhuma colocou a música da eguinha Pocotó e a coisa esquentou.

O vento batia na crina do Secretário. De onde eu estava dava pra filmar apenas a carranca do Primeiro-Cavalo; os demais vinham em fila indiana, certinhos, alinhados como a cavalaria troiana. O Secretário batia as ferraduras uma na outra, soltando faíscas no capinado: o céu era o limite, quem não aguentasse que pedisse as contas.

O cavalo do Secretário estufou as ventas, correndo atrás de metas feito um tarado no Campo de Marte. Seguindo as ordens da Alta Estrebaria, a cavalaria ligeira saiu em disparada, pisoteando a grama dos parques, derrubando latas de lixo, acordando os mosquitos da dengue, incomodando os veados folgados que troteavam na Avenida.

Aconteceu, porém, que a manada foi reduzindo a marcha sem prévio aviso; aqui e ali cavalos abanavam os rabos, tranquilamente, pra espantar moscas; outros apreciavam as nuvens, por achar muito sem graça aquela cavalgada louca, nada a ver com a música de Roberto & Erasmo. Correr pra onde, pra quê e por quê? — perguntavam-se os cavalos filósofos, não vendo sentido nos incentivos oferecidos. Vocês estão cansados, ou seria preguiça? — azurrou o Secretário, cuspindo uma baba amarela, relinchando e eriçando sua pelagem azul-marinho das quatro patas até a crina. Irado, o Secretário baixou a Ordem de Serviço 003/2009: Trabalharás feito um paulista!

Diz o ditado que quando um burro fala os cavalos esticam as orelhas. Um jegue marrom, que tentava se passar por puro sangue e cuja verdadeira natureza revelou-se tão logo o animal emitiu um solfejo característico, veio lá detrás com uma ideia genial:

— Por que não criamos um adicional?

Isso mesmo! Um Programa de Incentivo ao Aperfeiçoamento Profissional dos Jegues, o PROJEGUE!

— Boa ideia! — entusiasmou-se um terceiro jumento. A confusão estava armada. Burros e cavalos graduados falavam ao mesmo tempo.

— Um adicional?! O que é isso? — relinchou um cavalo velho e barbudo. — Adicional de quê?

— Ora, um adicional! — ouviram-se relinchos conflitantes.

— Isso mesmo, um adicional, um prêmio pra estimular os jegues e cavalos a correrem juntos. Unidos, bateremos todas as metas!

Ueba! Finalmente terei chances de chegar ao final da carreira! — disse um cavalo de barbicha, língua de fora, olhos esbugalhados pela correria.

— Juntos? Quem teve essa ideia de jumento?

— Juntos? Misturar cavalos de raça com asnos na mesma baia? Isso não!!! O adicional deve ser só pra quem nasceu até 31 de dezembro do ano de 1044, antes da vinda do Cavalo de Crista! (1044 a.C.C., é assim que se escreve).

Cavalo de Crista foi um cavalo lendário, um cavalo perfeito que veio ao mundo em época de seca medonha para ensinar a parentada a se alimentar do próprio vômito, a beber da própria urina pra matar a sede, se preciso fosse. Ensinava ele, o Cavalo de Crista, que adequar-se à Natureza é uma forma de alcançar o alinhamento correto. O Primeiro-Muar inventou o método do abomaso, ensinando os cavalos a ruminar — por isso os cavalos puros sangue são considerados os seres mais inteligentes da Fazenda.

E foi assim que se criou o adicional de cavalgadura, de forma a estimular o crescimento racional dos jegues. Foi assim também que os mais fraquinhos, por causa de restrições do Programa — não havia capim de primeira para todos —, foram empurrados para a retaguarda da tropa e acabaram capturados pelo fabricante de salame: muitos viraram carne moída, embutidos, linguiças e salsichas de origem duvidosa, usados como alimento para Máquina Legislativa. Outros passaram do ponto, não observaram o tempo de corte, foram cassados pelo Judiciário como se fossem rinocerontes do chifre branco e tiveram suas cabeças de jumento expostas no rol dos culpados. Alguns levaram duzentas chibatadas, perderam o rebolado e hoje vagam por aí, mendigando uma vaga de assessor nos Gabinetes da Assembleia Legislativa.

Mas a cavalada, puxada pelo Secretário, o Primeiro-Cavalo do Paço Administrativo, não podia parar o galope insano: “Trabalharás mais ainda!” E tome chicotadas.

De repente, sem ter nada a ver com a história, apareceu nesse cenário animalesco um porco espirrando e correndo atrás de um marreco. Este, por sua vez, corria atrás de uma galinha.  Coisa de maluco. Os cavalos da Estrebaria da Fazenda não deixaram por menos. Uns disseram que era campanha antecipada, intriga da oposição. Alguém mencionou algo sobre a filmagem de um episódio do Sítio do Picapau Amarelo. Outro relinchou que os bichos da fazenda tinham sido contratados para participar de um especial do MPB4, com músicas do Vinícius de Moraes. Vai saber.

Até que apareceu na Fazenda um filho de uma égua e desligou o padrão central de energia. A música da eguinha pocotó parou na hora. Ficou tudo no escuro, os bichos dando cabeçadas uns nos outros. Foi uma algazarra de patas, rosnados, chiados e penas. Daí, não vi mais nada. E acabou a história.

Ah, tudo isso aconteceu antes da chegada dos homens, com seus computadores maravilhosos.

chpeixoto@oi.com.br

(*) Conto publicado no livro A VOLTA DA MULHER BARBUDA, do autor.

ARTIGOS de CARLOS H. PEIXOTO

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