Antônio Sérgio Valente
Neste primeiro artigo da série, faremos breve abordagem histórica do tema e, em seguida, ligeira análise deontológica. No segundo artigo, analisaremos as inovações da Nota Fiscal Paulista. No terceiro, a sua eficácia. No quarto, uma alternativa mais barata e sem distorções.
Breve Abordagem Histórica
No último meio século, no Brasil, em vários entes da federação, houve experiências semelhantes à Nota Fiscal Paulista. Embora não idênticas, tiveram pelo menos dois traços em comum: tinham os mesmos objetivos e fracassaram. Nenhuma logrou mitigar a sonegação, nem arraigar no consumidor o hábito de exigir nota fiscal. Para não ir muito longe, vejamos duas iniciativas paulistas.
A primeira, iniciada ao tempo do antigo IVC – Imposto sobre Vendas e Consignações, foi introduzida pelo então governador Adhemar de Barros, através da Lei 8233/64, em plena ditadura militar, e foi acolhida pelo superveniente ICM — Imposto sobre Circulação de Mercadorias. Levava o sugestivo título de Talão da Fortuna. O slogan da campanha era: Suas Notas Valem Milhões. O consumidor juntava documentos fiscais que davam direito ao câmbio por talões numerados (uma espécie de bilhetes lotéricos), com os quais concorria a prêmios pelo sorteio federal. Vigorou até o final daquela década, quando o então Secretário da Fazenda de São Paulo, que mais tarde se tornaria Ministro da Fazenda do Brasil, o saudoso Dilson Funaro, já no governo de Abreu Sodré, percebeu que o mero emitir de Notas Fiscais não diminuía a sonegação e que o interesse maior era pelos sorteios.
Depois, no governo de Paulo Maluf, através do Decreto 14838/80, criou-se uma campanha denominada Turma do Paulistinha. O slogan era: O ICM dá Sorte. O consumidor juntava notas fiscais para trocá-las por álbuns e figurinhas, algumas das quais eram bem mais difíceis que outras; cada etapa preenchida dava direito a um prêmio. Era um pouco mais inteligente que a anterior, pois objetivava conscientizar não apenas os adultos, mas sobretudo a geração seguinte: o filho intimava os pais a pedirem nota quando fossem à mercearia, ao açougue, etc.
A pergunta que se impõe é: por que fracassaram?
A resposta não está certamente na criatividade nem na intenção das campanhas, que de fato eram muito sugestivas e foram bem populares. A resposta quem nos dá é a deontologia.
Razões Deontológicas
A deontologia é o ramo da Ética que tem por objeto o estudo dos fundamentos do dever e das normas morais. Traduzindo em miúdos, é a teoria do dever, do dever-ser, do que deve ser feito.
Segundo Kant, a deontologia objetiva atender a dois conceitos básicos: a razão prática (o motivo) e a liberdade. O primeiro, porque toda ação é impregnada de um valor moral, e é este que, embora varie em função da sociedade, da cultura, da época e do grupo que o pratica, reveste a ação com uma couraça dogmática: o Direito Positivo a razão prática acolhe ainda que provisoriamente. O segundo, porque só a vontade livre alcança a perfeição moral; eis porque nos regimes totalitários, seja no comunismo, nazismo ou fascismo, o diálogo com os valores morais foi sempre imperfeito: áspero, amoral, em certos casos até imoral.
Em outras palavras, a deontologia informa que o que deve ser feito passa necessariamente pela consciência livre de quem faz, e esta é sempre instruída por valores morais que não se submetem ao crivo comercial, não podem ser comprados, vendidos, barganhados, não estão disponíveis nas prateleiras da vida. Ainda que respondam a influências oportunistas, a médio prazo estas tendem a arrefecer.
É que consciência comprada ou induzida não é o mesmo que consciência livremente formada; pelo contrário, é consciência deformada. A ideia de levar vantagem em tudo (a chamada Lei de Gérson), de pedir nota para concorrer a milhões, ganhar uma bicicleta ou pagar menos IPVA, é uma tentativa de deformação deontológica. Mas não é dessa forma que se enraíza nas atitudes do cidadão a consciência livre, o hábito de exigir nota fiscal. O resultado prático, a médio e longo prazo, é exatamente o oposto, pois o estímulo associa o tributo a algum interesse imediato e estritamente pessoal ou familiar (bilhete, figurinha, prêmio, crédito na conta, IPVA menor, etc), sempre muito distante da verdadeira consciência de cidadania, pois esta objetiva o interesse público (saúde, educação, estradas, etc.). A deturpação do conceito leva, mais cedo ou mais tarde, mas inexoravelmente, ao seguinte desfecho: extinta a vantagem que motiva a ação, estanca o interesse por ela.
Aplicando o encadeamento deontológico ao caso específico da nota fiscal, o contribuinte tem o dever de emiti-la, e o motivo não pode ser apenas a lei, mas sim o valor moral que a instrui. Porque a nota fiscal é o primeiro passo no caminho de declarar e pagar o tributo ao Estado, que por sua vez, através do governo, deve restituí-lo à sociedade, que o pagou, sob a forma de obras, educação, cultura, saúde, justiça, etc. Em suma, o motivo, a razão prática da emissão da nota fiscal é a restituição do tributo à sociedade na forma prometida e convencionada.
Já o consumidor tem o dever de pagar o tributo (embutido no preço) ao comerciante, e o direito de exigir a restituição conforme o que foi combinado (obras, educação, saúde, diversão, etc). Vale dizer, não é dever do consumidor fiscalizar o recolhimento do tributo; pelo contrário, é seu direito exigir que o tributo por ele pago suba ao erário público e retorne à sociedade na forma combinada.
Por último, o governo, que administra o Estado, é que tem o dever de ser leal com quem pagou o tributo, de observar se o recolhimento está correto, e, sobretudo, de alocar eficientemente os recursos, conforme o contrato social e as promessas eleitorais.
Mas se as peças envolvidas nessa engrenagem começarem a falhar, a máquina pública não funciona como deveria. E é de se notar que uma peça não consegue exercer, por sua própria natureza, a função de outra; pelo contrário, não raramente uma correia defeituosa, por exemplo, força e desgasta um eixo que em breve também apresentará defeito. Logo surgirão ruídos na engrenagem, faíscas, fumaças e emperramentos. Eis porque é fundamental o conserto das peças defeituosas, a manutenção constante da máquina, a lubrificação que a conserva e agiliza, enfim, os cuidados que mantêm o seu bom funcionamento.
Porque se o cidadão, seja consumidor ou contribuinte, notar que o tributo injetado por ele não está voltando à sociedade com a lisura e a eficiência esperadas, que ele está sendo de alguma forma ludibriado, que a cada mês há um novo escândalo na praça, emendas negociadas aqui, obras superfaturadas ali, ONGs que recebem recursos indevidos acolá, licitações à moda do chefe, dinheiro público onde deveria estar o privado, escolas que vão de mal a pior, hospitais que lembram o purgatório, rios que jamais são despoluídos, pedágios com ares de escorcha, injustiças tributárias disparadas por Robin Hoods do avesso, drogados a céu aberto e mendigos que não são tratados como gente, tudo sob a vista grossa do governo, enfim, se há várias peças defeituosas na máquina, o risco de a bomba injetora também falhar é imenso. É quase impossível reverter esse quadro, que deforma as consciências, com meros programas de estímulo à cidadania ou até mesmo com repressão.
Também de nada adianta regurgitar à bomba uma parte ínfima do combustível que ela própria injeta, pois isto apenas avaria ainda mais a função da peça e ajuda a emperrar a máquina. Devem, isto sim, ser consertados os mecanismos com defeito, os apontadas no parágrafo anterior. A própria NF Paulista é uma peça parcialmente avariada; por ela se esvai, em grande parte inutilmente, um pouco do tributo. Há que reparar essa perda e formar de fato a consciência livre de quem faz o que deve ser feito.
No próximo artigo, abordaremos mais especificamente o tema.
ARTIGOS de ANTONIO SÉRGIO VALENTE
NOTA: Os textos assinados não refletem necessariamente a opinião do BLOG do AFR, sendo de única e exclusiva responsabilidade de cada autor.