Antônio Sérgio Valente
Na assembleia de uma das mais notáveis e criativas carreiras fiscais do Brasil, a dos Agentes Fiscais de Rendas do Estado de São Paulo, em 26 de abril de 2014, o governo estadual conseguiu — por controle remoto, mediante a maquiavélica estratégia de dividir para governar — criar um novo trava-língua em português.
A categoria, superada em vencimentos de piso e teto pelos equivalentes federais, pelos municipais de São Paulo, por outros tantos estaduais e municipais do Brasil afora, acomodou-se na terceira classe das remunerações, perdeu a unidade, a união e o bom senso, desaprendeu que as grandes conquistas vêm aos poucos, para todos, com pleitos serenos e de cabeça erguida.
Quanto ao piso, o do Estado de São Paulo é o mais vergonhoso de todo o país, em valores absolutos, o único com um Nível Básico situado 1200 quotas abaixo do Nível I, enquanto entre os níveis seguintes a defasagem é de apenas 400 quotas. Uma anomalia injustificável.
Quanto ao teto, o Fisco paulista figura na terceira classe dentre as carreiras de maior relevância. Na primeira, estão as carreiras (algumas fiscais) contempladas com o teto nacional, equivalente aos subsídios dos Ministros do STF. Na segunda, estão as carreiras (várias fiscais) beneficiadas pelo teto único estadual, que não pode ultrapassar 90,25% do teto nacional. E na terceira classe estão as carreiras submetidas ao teto demagógico do governador de plantão, que em SP corresponde a 70,13% do teto nacional (R$ 20.662,00 / 29.462,25).
Não obstante esse quadro, uma parte da ala mais jovem da carreira paulista, pasmem, suplicaria de joelhos, as mãos em prece, se o governador estivesse presente e houvesse genuflexórios na sala, esta deprimente oração de um jovem aprisionado no porão da terceira classe:
Contemplai-nos, excelência, com o que bem entender vossa augusta generosidade, trave as travas atravessadas. Não vos rogamos uma anual data-base e um índice qualquer de reajuste. Pouco se nos importa a inflação pretérita e o resultado real do nosso esforço. Pouco se nos importa se ignorais as Constituições. Seja feita a vossa vontade, excelência. Prostramo-nos ao vosso dispor, não nos indexeis a mais nada, a não ser ao vosso livre e magnânimo alvedrio. Sequer ousamos erguer os olhos para o teto, permiti-nos apenas sair do porão, concedei-nos alguma liberdade para galgar mais depressa os degraus da escada. Não vos importeis, excelência, com os que tentam puxar-nos para cima, nessas cordas precárias presas ao teto, têm na boca o travo das travas atravessadas, insensatos visionários encanecidos e/ou calvos, castigai-os, mantende-os curvados sob o rebaixado teto da terceira classe, para que os alcancemos em dois ou três quinquênios, e nesse dia glorioso, quando muitos deles já tiverem partido, concedei aos remanescentes e a todos nós, então finalmente unidos, a graça de auferir o que outrora lhes tirastes e negastes.
Para o pasmo geral, essa ala se posicionava contra a PEC do teto, mesmo ante o esclarecimento de que o novo teto elevaria o piso prontamente. Insistiam na recusa, teimando que o fosso se alargaria, levariam para casa a quota de R$ 2,03, máxima consentido pelo atual art. 16 da LC 1059/08, enquanto os decanos levariam R$ 26.589,68 (equivalente à quota de R$ 2,21), a injustiça seria maior, argumentavam. Evidentemente, estava implícita a desconfiança no atendimento ao pleito que soterraria o Nível Básico e o Nível I, pois neste caso o ganho menor nos degraus mais elevados da carreira seriam compensados com ganhos exclusivos nos degraus inferiores. Insistiam que, se o pleito dos níveis não fosse atendido, o fosso se alargaria. Foi-lhes explicado que havia a hipótese de PEC combinada com PLC, atrelando a trava ao novo teto, já no caput do artigo, o fosso relativo continuaria intacto, e os reajustes futuros estariam travados nos subsídios dos desembargadores, o art. 16 da LC teria de ser alterado, eis que então o teto seria outro.
— Não e não — replicaram. — O fosso absoluto cresce. Ademais, não acreditamos em utopias, preferimos a conservadora garantia da trava da trava, a quota fixada no teto atual do governador já será uma vitória, 1/12000 do teto atual (= 0,008334%), assim temos uma garantia de que o fosso não se alargará enquanto a PEC não vier.
Ninguém ganha, mas ninguém perde, chegaram ao extremo de defender esta tese.
Como se vê, um ceticismo retrancado na base da classe.
— O que está havendo? — um estarrecido colega da ativa me perguntou.
— É o travo das travas atravessadas — expliquei, indicando a garganta, e ele riu, mas não sei se compreendeu exatamente o que eu quis dizer.
Tudo começou quando, através de seu fiel escudeiro e secretário de fazenda, Mauro Ricardo, o então governador José Serra, candidato à sucessão presidencial de 2010, alterou as normas da categoria. Enfiou, em 2008, num OVNI (Objeto Voador Não Identificado), várias vantagens pessoais conquistadas pelos servidores da carreira, rubricou-as com o pomposo nome de VPNI (Vantagens Pessoais Nominalmente Identificadas, embora essa rubrica não as identifique), travou a porta do OVNI para que os ares da atmosfera inflacionária não oxigenassem os tripulantes, e o lançou em direção ao espaço sideral, metáfora que bem poderia ser substituída pela Geena infernal.
O feixe de partículas propulsoras ejetado pela cauda do OVNI foi devastador, era um baita rabo de foguete, deixou marcas profundas na base de lançamento, cavou um subsolo, um piso subterrâneo ao qual se atribuiu o nome de Nível Básico, talvez por ser da mesma família da Cesta Básica, aquela que serve para matar a fome, limpar, limpar-se e nada mais.
Esse OVNI atingiu o espaço e passou a gravitar em torno da Terra em companhia de outra nave, lançada quatro anos antes, ao pôr em órbita os quinquênios e as sextas-partes de todos os servidores públicos do Brasil.
Todo esse lixo espacial vez ou outra, uma parte aqui, outra acolá, volta à atmosfera de gravidade e cai na cabeça de quem o lançou, de forma direta ou de través, que o digam as trajetórias dos seus maquiavélicos idealizadores.
O lixo de 2008 não era apenas espacial, era especial: atingia exclusivamente a categoria tributária paulista. Tinha, a bem da verdade, uma face sedutora: para compensar os benefícios perdidos no espaço pelo OVNI, o governo entregaria à carreira um incerto e enigmático bônus rebolativo, uma espécie de bolinho e bolão reciclados, tão enigmático e rebolativo que lhe atribuíram de pronto uma dúvida quanto ao gênero: um nome feminino, PR — Participação no Resultado. É que um governante candidato à Presidência da República precisa exibir obras e serviços públicos ao eleitor, e isto não se faz se o servidor que arrecada não produzir bons resultados.
Além do bônus rebolativo, o governo prometeu — no texto da lei nova, por escrito — que corrigiria os vencimentos futuros, tomando por base o mês anterior ao da lei, em função do aumento real da arrecadação. O governo não concederia a inflação, mas apenas o crescimento real. A carreira que rebolasse para produzir resultados reais, a qualquer preço, ainda que para tanto tivesse de tornar ainda mais caótico o sistema tributário brasileiro.
O resultado para o erário foi magnífico, a arrecadação cresceu exuberantemente mesmo quando a economia definhava. É verdade que para tanto teriam de internar o ICMS num manicômio, só não o fizeram porque os hospícios particulares estavam lotados e os públicos tinham sido fechados havia alguns anos, então deixaram o esquizofrênico ICMS solto na praça, maluquinho da silva, tanto que as empresas passaram a evitá-lo, a planejar estratégicos caminhos para desviar dele. E os investidores estrangeiros trataram de arquivar no escaninho do susto as plantas empresariais que pretendiam instalar no Brasil.
Ao perceber que a maluquice não levara ao Planalto o idealizador maquiavélico da trama, e que o sistema tributário derivava por atalho perigoso, o governo de plantão desdisse o que dissera, descumpriria o que prometera: travaria uma das compensações prometidas, o aumento da categoria em face da expansão real das receitas tributárias.
Esta trava e as anteriores colocadas na porta do OVNI e da nave, enfiadas goela abaixo da categoria e da sociedade, ficaram e estão ainda atravessadas nas gargantas, lacerando as vozes e os ânimos. Deixam um sabor amargo nas papilas gustativas, um travo que pode até travar a língua de muitos, mas não consegue travar a mágoa e o inconformismo da maioria. Muitos já estão revendo posições políticas e partidárias, embora, a julgar por raras manifestações na AGE, ainda haja um grupo afetado pela Síndrome de Estocolmo — põem no céu os seus algozes e temem, se a classe partir para o confronto ostensivo, a perda da salvação. É como se ignorassem que os do céu precisam da classe tanto quanto a classe deles precisa. É como se ninguém soubesse que defendem apenas as funções que exercem, que podem perdê-las se o poder mudar de mãos, eis que esse governo politizou a carreira.
Ficou bem claro, na AGE, os danos que o travo das travas atravessadas deixaram na categoria: há uma sensação forte de desconfiança em relação à cúpula fazendária, em relação ao governo de plantão, em relação aos próprios dirigentes classistas, e até uma desconfiança recíproca entre os vários segmentos da carreira. Felizmente, a desunião total foi superada, ao menos aparentemente, ao menos em parte, sob o quórum apertado de uma AGE minguada, travada, também ela, pela insensatez de um estatuto burocrático, filhote bastardo do travo das travas.
Bem ou mal, embora radicalizando com indisfarçada demagogia, aprovaram-se os pleitos pela PEC do teto único estadual, combinado com PLC que vincule o valor da quota aos subsídios dos desembargadores, a extinção dos níveis Básico e I, e o aumento da velocidade das promoções, dentre outros de longo prazo (Loat, cujos detalhes sequer foram debatidos com a categoria), ou de menor alcance (vale-refeição e ar-condicionado).
O clima da AGE foi tão árido que de propostas mais palatáveis e viáveis, menos radicais e demagógicas, sequer seria possível cogitar, o apupo foi a tônica. Propostas como o fracionamento do Nível Básico combinado com maior celeridade nas promoções, numa ponta, e teto estadual fazendário inclinado (mediante PEC que criaria um § 9º no atual art. 115 da CE, com lastro na CF, art. 37, incisos X, XII e XVIII), que teriam menos peso no orçamento estadual e permitiriam à classe tomar a sopa quente pelas beiradas, largo tempo de exposição e debates demandariam, indisponível numa AGE que levou quase duas horas para escolher o seu presidente e teve umas quatro conferências físicas de quórum.
Oxalá o sindicato consiga vislumbrar, entre os extremos pleiteados no plano A aprovado, alternativos planos B e C, o caminho do meio, sem radicalismos e demagogias, que não alarguem o fosso, mas sejam mais viáveis negociáveis, contemplem todos os segmentos da classe, sob pena de ampliar os troféus de Nãos que vem acumulando em sua galeria. E que o sindicato faça o dever de casa, que consiga produzir planilhas de custos de cada pleito e memoriais argumentativos para submeter previamente à classe, em fórum virtual, no site, e em seguida levá-los à mesa de negociação.
Eis, enfim, a crônica de uma AGE tardia, na qual por um triz não ocorreu um desastre que só um trava-língua seria capaz de explicar:
— O travo das travas atravessadas trava a trava de través.
ARTIGOS de ANTONIO SÉRGIO VALENTE
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