Novas diretrizes em tempos de crise II

Gustavo Theodoro

No artigo anterior, observamos que os fiscos parecem sufocados pela imensa base de dados que acumularam, fazendo nascer, nos governos políticos, o desejo de substituir a classe fiscal por modelos de arrecadação monofásicos – como a substituição tributária – ou por um programa de sorteios, como a nota fiscal paulista. Constatamos, em decorrência disso, que é cada dia mais urgente aproveitar melhor essa base de dados, ainda que seja necessário introduzir profundas mudanças nos métodos de trabalho do Fisco. Ilustramos a proposta do Fisco de Pernambuco, que instituiu a malha fina do ICMS pernambucano. A partir de 2008, divergências entre as bases de dados do Fisco geram um aviso para o contribuinte, sendo-lhe aberto o prazo de 30 dias para pagar espontaneamente o imposto devido e promover a regularização de sua escrita fiscal. Neste artigo será analisado o instituto da malha fina à luz do Código Tributário Nacional.

O CTN é norma engenhosa concebida nos primeiros anos da ditadura que se instalou no Brasil em 1964. Apesar dos tempos sombrios, o período produziu algumas normas de muito boa qualidade. Foi um período de intensas mudanças em nosso sistema tributário, com a introdução de um imposto assemelhado ao IVA francês, o ICM, em substituição ao velho IVC. Ao mesmo tempo estava sendo concebido o projeto do novo CTN.

A seção do CTN que trata das modalidades de lançamento (artigos 147 a 150) é, até hoje, objeto de seríssimas controvérsias. Os primeiros doutrinadores que se puseram a estudar os citados artigos não tiveram dúvidas a respeito da classificação do lançamento em três modalidades: o lançamento de ofício, o lançamento por declaração e o lançamento por homologação (ou autolançamento).

No lançamento de ofício, a autoridade administrativa executaria toda a atividade do lançamento descrita no artigo 142 do CTN. No lançamento por declaração, o contribuinte forneceria alguns dados, em declaração, para o Fisco, que então executaria o lançamento. No lançamento por homologação, o contribuinte realizaria toda a atividade descrita pelo artigo 142 do CTN e anteciparia o pagamento sem prévio exame do Fisco, que teria 5 (cinco) anos para homologar o lançamento.

O Direito Tributário evoluiu e um conjunto de perplexidades vieram à tona nos estudos sobre o significado do lançamento e sua classificação. A maioria das polêmicas que envolvem o assunto será evitada neste texto, visto que doutrinadores já escreveram milhares de páginas sobre o assunto. Porém, não posso evitar o trato da questão envolvendo a malha fina.

A classificação proposta pelo Código talvez não seja a mais adequada, pois atualmente é identificada a polissemia do termo lançamento, que ora é descrito como norma, ora como procedimento e ora como ato administrativo. Por conta disso, temperemos a redação original do CTN com a moderna crítica a sua classificação.

Hoje parece irrelevante o grau de participação do sujeito passivo no lançamento. Melhor seria classificar em duas as modalidades de constituição do crédito tributário: pela autoridade fazendária ou por terceiros (sujeito passivo ou judiciário). Em retrospectiva, não parece boa a ideia de vincular a formalização do crédito tributário pelo contribuinte ao lançamento e instituir um lançamento ficto, cuja homologação nem sequer ocorre na prática.

De todo modo, assim foi elaborado nosso sistema positivo. Não podemos construir nossos edifícios doutrinários desconsiderando o texto legal. Ponderamos, portanto, que o Código instituiu a classificação das modalidades do lançamento com base no grau de participação nele do sujeito passivo. Adotaremos, então, a classificação proposta pelo próprio CTN, mas tendo em perspectiva o conhecimento produzido desde então sobre a forma como o termo lançamento é utilizado no próprio código.

Para ilustrar essa classificação, as velhas doutrinas escolhiam um imposto para exemplificar cada tipo de lançamento: o IPTU, para o lançamento de ofício; o IR, para o lançamento por declaração e o ICMS, para o lançamento por homologação. É com base nessa classificação que vimos juristas defenderem que a malha fina só seria juridicamente admissível para os impostos por declaração. Isso decorre da própria redação do artigo 147 do CTN. Diz o citado artigo que o lançamento é efetuado com base na declaração do sujeito passivo quando este presta à autoridade administrativo informações sobre a matéria de fato. É o parágrafo 1º do artigo 147 que autoriza a retificação da declaração por iniciativa do próprio declarante, quando vise a reduzir ou excluir tributo, mas isso só é admissível mediante comprovação do erro em que se funde, e antes de notificado o lançamento. O parágrafo 2º estabelece que o lançamento deve ser retificado de ofício em caso de erro constatado pela autoridade administrativa (evidentemente a retificação dar-se-á quando for diagnosticado erro no lançamento de ofício efetuado anteriormente).

Antes de prosseguir, faz-se necessário fazer breve alerta. Apesar de haver diversas doutrinas que perscrutaram palavra por palavra do CTN, não há muitos escritos esmiuçando cada imposto à luz do sistema tributário a que ele pertence. Só recentemente foram lançadas algumas dissertações com descrição da regra-matriz de cada tributo, buscando entender o fenômeno tributário integralmente. Assim, o IRPF, por exemplo, assenta-se mais confortavelmente sobre sua história, sob sua legislação positiva ordinária, do que em cotejo do CTN. A complexidade do imposto sobre a renda também afasta muitos cientistas do Direito, pois a própria definição de renda atualmente acha-se em dificuldades. As complexidades introduzidas pelas modalidades IR-fonte, IR-lucro presumido e IR-ajuste anual fazem parecer que não há apenas um imposto, mas diversos coexistindo sob uma única rubrica. Por sorte, não será necessário, no âmbito deste breve artigo, desvendar esse tributo por inteiro. Voltemos à análise do artigo 147, sabedores que estamos praticamente sós nesse caminho.

O artigo 147 não indica que há autorização para que o Fisco avise o contribuinte de possível erro cometido pelo sujeito passivo. O que há é a previsão, pelo parágrafo 1º, de que o próprio contribuinte retifique sua declaração antes de notificado o lançamento, mas não há qualquer menção ao auxílio da autoridade administrativa na detecção de erros. É de se ressaltar que o caput do artigo 147 induz a interpretação de que, de posse das informações prestadas em declaração, a autoridade administrativa irá efetuar o lançamento. Antes de completar a derrubada desse edifício, vejamos o que diz a legislação do Imposto sobre a Renda, especificamente os artigos 74 e 76 do Decreto-Lei 5.844 de 1943.

O caput do artigo 74 do citado decreto só estabelece que as declarações prestadas pelo contribuinte estão sujeitas à revisão. Os parágrafos do artigo 74 definem o procedimento que devem ser adotados pelo contribuinte e pelo fisco durante a análise da declaração. O artigo 76 é, de todos, o mais interessante, por estabelecer que, feita a revisão da declaração de rendimentos, proceder-se-á ao lançamento do imposto, notificando-se o contribuinte do débito apurado.

Apesar de ser assim originalmente desenhado, o imposto sobre a renda não depende mais de lançamento de ofício para a constituição do respectivo crédito tributário. O próprio contribuinte preenche todas as informações requeridas pelo Fisco e efetua, antecipadamente, o pagamento do imposto sem prévio exame da autoridade administrativa. Se bem nos lembrarmos da redação do artigo 150 do CTN, perceberemos que o IR-ajuste anual atualmente não passa de um imposto sujeito ao lançamento por homologação. Assim, se nos dispusermos a conferir efetividade à classificação proposta pelo CTN, é provável que não tenhamos mais exemplo de imposto sujeito ao lançamento por declaração, visto que mesmo o ITR, o último da espécie, tem passado por transformações nos últimos anos.

Isso nos coloca diante da reflexão a que nos propomos no primeiro artigo desta série acerca da possibilidade de instituição de malha fina para impostos sujeitos ao lançamento por homologação. É evidente que sim, dirão alguns, uma vez que o IRPF já não é imposto sujeito ao lançamento por declaração e a Receita Federal continua se utilizando da malha fina sem se dar conta da possível mudança na classificação de seu tributo. Para os que operam com ICMS seria boa notícia, pois poderíamos, se julgássemos conveniente, adotar as estratégias que já foram postas em práticas pelo fisco pernambucano e implantar a malha fina do ICMS.

O estudo da matéria, no entanto, acaba por nos levar a outro caminho. Os impostos sujeitos ao lançamento por homologação não estão sujeitos à revisão benigna, isto é, sem aplicação de penalidade. É o que se depreende da leitura dos artigos 150, 149, inciso V e 138 do CTN.

O artigo 150 estabelece que cabe ao sujeito passivo da obrigação tributária a constituição do crédito e o pagamento antecipado do imposto sem prévio exame da autoridade administrativa. O inciso V do artigo 149 informa que, para os tributos sujeitos ao lançamento por homologação, erros e omissões incorridos pelo responsável na prática da atividade descrita no artigo 150 implicarão o lançamento de ofício. O artigo 138 do CTN trata da denúncia espontânea e estabelece que cessa a espontaneidade qualquer medida da fiscalização relacionada à infração.

Logo, se nos dispusermos a confiar no edifício doutrinário que construímos neste país, nem mesmo a Receita Federal poderia informar o contribuinte de divergências verificadas na Declaração de IRPF sem emitir a notificação e exigir, de ofício, eventual tributo devido. Isso pode ser modificado por meio de alteração da legislação, em especial do Código Tributário Nacional. Pode-se argumentar que o procedimento adotado pela Receita do Brasil não é objeto de qualquer questionamento, estando, de algum modo, integrado ao nosso sistema tributário. No entanto, qualquer novidade que seja introduzida em outros tributos, como o ICMS, certamente será objeto de cuidadosa análise nos meios jurídicos, podendo desencadear novas áreas de conflito, algo que tanto lutamos para evitar.

Não desconheço as correntes que pretendem introduzir conteúdo histórico, levando em conta a tradição, na interpretação dos textos positivos. Edmund Burke é um dos pioneiros desse tipo de pensamento. Hans Kelsen fez crescer a escola positivista, dando força inaudita à norma posta, em especial ao texto constitucional. Mas o próprio STF por vezes cita a influência do direito posto, da legislação infraconstitucional, na interpretação do próprio texto da Carta Magna. O mesmo raciocínio pode ser levado a eventuais conflitos entre leis complementares e ordinárias, provocando novas antinomias ou alinhamentos.

Pode-se ainda considerar que a existência pacífica da malha fina no IRPF nos autoriza a, sem maiores elucubrações, aplicá-la também ao ICMS, de forma pragmática. Contudo não me alinho a essas correntes pragmáticas ou históricas que fazem largo uso da razoabilidade e de outros princípios pouco elucidativos. Ainda que o capítulo que introduz modalidades do lançamento seja um tanto polêmico e mesmo que não adotemos a classificação pretendida pelo CTN, a espontaneidade é quebrada com o início de qualquer procedimento iniciado pela autoridade administrativa.

Diante dos argumentos expendidos, considero ilegais sistemas que avisem os contribuintes de irregularidades cometidas na atividade de constituição do crédito tributário, para tributos como o ICMS, sem o afastamento de sua espontaneidade. Logo, considero ilegal a malha fina pernambucana.

No próximo artigo, continuaremos avaliando caminhos que propiciem a plena utilização dos dados de que dispomos. O processo de mudança de paradigmas é doloroso, mas necessário, pois é fruto da alteração do mundo que nos cerca. Devemos, portanto, nos acautelar para que as mudanças aliem a boa técnica à legalidade das ações, a segurança das medidas à autonomia do AFR e a justiça organizacional ao severo rigor contra as ilegalidades. E é a esse equilíbrio que almejamos.

lgtheodoro@gmail.com

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