Créditos de ICMS e a Zona Franca de Manaus

Francisco das Chagas Barroso*

Manutenção e utilização dos créditos de ICMS nas operações de remessa de mercadorias para a Zona Franca de Manaus, face às disposições do Decreto-Lei nº 288/67 que equipara essas operações às exportações.

1- Introdução

Os Estados da Federação têm relutado em aceitar que empresas contribuintes de ICMS procedam à manutenção e utilização irrestrita de créditos de ICMS pela entrada em relação a mercadorias destinadas à Zona Franca de Manaus. Essas operações de saídas são isentas de tributação, por força do Convênio ICM n° 65/88, o qual também prevê o direito ao crédito presumido no destino equivalente ao valor da isenção.

As empresas remetentes, que nem sempre se qualificam como industriais, têm alegado, inclusive na esfera judicial, seu direito à apropriação irrestrita dos créditos fiscais de ICMS pela  entrada dessas mercadorias em seu estabelecimento, sob o argumento de que o art. 4° do Decreto-Lei 288, de 26-02-1967, abaixo transcrito, equipara essas operações para todos os efeitos fiscais, a uma operação de exportação para o exterior.

Decreto-Lei 288, de 26-02-1967:                         

Art. 4° – A exportação de mercadorias de origem nacional para consumo ou industrialização na Zona Franca de Manaus ou reexportação para o estrangeiro será para todos os efeitos fiscais, constantes da legislação em vigor, equivalente a uma exportação brasileira para o estrangeiro.

Tal questão vem suscitando controvérsias e contendas, tendo de um lado os Estados da Federação, com chancela do Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ, e de outro lado os contribuintes de ICMS, albergados pelo Estado do Amazonas.

Nesse contexto, cabe examinar tal questão sob vários aspectos, entre os quais o princípio constitucional da não-cumulatividade, a competência privativa dos Estados, decisões do Superior Tribunal de Justiça e até a possibilidade de essas operações, na hipótese de virem a ser consideradas exportações para efeitos fiscais, no âmbito do ICMS, comportarem compensação pela União Federal aos Estados envolvidos.

2- Análise

2.1. O princípio da não-cumulatividade e a regra da não utilização de créditos em relação às operações isentas ou não tributadas.

O artigo. 155, § 2º, II, “b”, da Constituição de 1988 estabelece como uma das regras de exceção ao princípio constitucional da não-cumulatividade que a isenção ou não-incidência do ICMS, salvo determinação em contrário da legislação, acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores.

Art. 155 :

(….)

§ 2º O imposto previsto no inciso II, atenderá ao seguinte:

II – a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:

(…..)

b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores;

 

Existem polêmicas levantadas sugerindo incompatibilidade dessas disposições com o princípio da não-cumulatividade consagrado na própria Carta Magna. De fato, fica evidente que tal regra carrega um certo grau de cumulatividade do imposto, mas se trata de uma circunstância autorizada pela própria Constituição, na qual, decerto, o legislador visou equilibrar o peso dessas desonerações do imposto aos Estados da Federação.

Tal regra constitucional veio a ser parcialmente regulamentada pela Lei Complementar nº 87/96.

Art. 20 – Para a compensação a que se refere o artigo anterior, é assegurado ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento, inclusive a destinada ao seu uso ou consumo ou ao ativo permanente, ou o recebimento de serviços de transporte interestadual e intermunicipal ou de comunicação.

§ 1º Não dão direito a crédito as entradas de mercadorias ou utilização de serviços resultantes de operações ou prestações isentas ou não tributadas, ou que se refiram a mercadorias ou serviços alheios à atividade do estabelecimento.

(…)

§ 3º É vedado o crédito relativo a mercadoria entrada no estabelecimento ou a prestação de serviços a ele feita:

(…)

II – para comercialização ou prestação de serviço, quando a saída ou a prestação subseqüente   não forem tributadas ou estiverem isentas do imposto, exceto as destinadas ao exterior.

§ 4º Deliberação dos Estados, na forma do art. 28, poderá dispor que não se aplique, no todo ou em parte, a vedação prevista no parágrafo anterior. (grifamos)

Cabe anotar que foi vetado o art. 28 citado no § 4º acima e que estabelecia a forma como os Estados poderiam conceder o benefício fiscal da manutenção e utilização dos créditos fiscais do ICMS relativos às saídas de mercadorias amparadas pela isenção e não incidência.

Tal veto acendeu três correntes de entendimento:

a) o veto criou um vácuo legislativo;

b) tratava-se de uma manifestação clara de proteção à competência tributária privativa dos Estados, deixando para cada ente tributante a prerrogativa de assegurar ou não a manutenção dos créditos do ICMS nas saídas isentas e não tributadas;

c) o motivo de tal veto foi o fato de que tal matéria já se encontrava disciplinada por norma de igual hierarquia, a Lei Complementar nº 24/75, conforme abaixo:

Art. 1º – As isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias serão concedidas ou revogadas nos termos de convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal, segundo esta Lei.

Parágrafo único – O disposto neste artigo também se aplica:

(….)                                         

IV – à quaisquer outros incentivos ou favores fiscais ou financeiro-fiscais, concedidos com base no Imposto de Circulação de Mercadorias, dos quais resulte redução ou eliminação, direta ou indireta, do respectivo ônus;

Na análise dessas três correntes, cabe, de imediato, refutar a tese do “vácuo legislativo“, pois, além de outras razões, criaria uma tremenda insegurança jurídica na matéria tributária tratada.

A 2ª  hipótese também não seria viável, pois se traduziria em um incentivo à guerra fiscal entre as unidades da federação;

A corrente majoritária concorda que o art. 1º da Lei Complementar nº 24/75 é plenamente compatível com as disposições constitucionais, notadamente as constantes do artigo 155, § 2º, inciso XII, alínea “g”, e, portanto, por esta foi recepcionada.

Tal entendimento é corroborado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Alguns julgados:

CONVENIOS E CONCESSÃO DE ISENÇÃO, INCENTIVO E BENEFICIO FISCAL EM TEMA DE ICMS: A celebração dos convenios interestaduais constitui pressuposto essencial a valida concessão, pelos Estados-membros ou Distrito Federal, de isenções, incentivos ou benefícios fiscais em tema de ICMS. Esses convênios – enquanto instrumentos de
exteriorização formal do prévio consenso institucional entre as unidades federadas investidas de competência tributaria em matéria de ICMS – destinam-se a compor os conflitos de interesses que necessariamente resultariam, uma vez ausente essa deliberação intergovernamental, da concessão, pelos Estados-membros ou Distrito Federal, de isenções,
incentivos e benefícios fiscais pertinentes ao imposto em questão. O pacto federativo, sustentando-se na harmonia que deve presidir as relações institucionais entre as comunidades politicas que compõem o Estado Federal, legitima as restrições de ordem constitucional que afetam o exercício, pelos Estados-membros e Distrito Federal, de sua competência normativa em tema de exoneração tributaria pertinente ao ICMS. (ADI 1247 MC / PA – PARA, rel. Min. CELSO DE MELLO, Julgamento: 17/08/1995, Publicação: DJ DATA-08-09-1995 PP-28354 EMENT VOL-01799-01 PP-00020).

ADIN Nº 2.376-MC que teve como requerente o Governo de Minas Gerais:

“A liberação de isenções, incentivos e benefícios fiscais pelos Estados-Membros e Distrito Federal depende de Lei Complementar (CF, artigo 155, § 2º, XII, g). Ato governamental concessivo de desoneração de ICMS em operações internas sem que tenha sido objeto de convênio e que não levou em conta a Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975, recebida pela Constituição Federal de 1988, é o bastante para caracterizar por si só a sua inconstitucionalidade. Precedentes (ADIMCs 2.736-PR, Sydney Sanches, julgada em 15/02/01, e 2.353-ES, Sepúlveda Pertence, julgada em 19/12/00, inter plures).” (ADI 2.376-MC, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 04/05/01)

 

2.2 – O Convênio ICM nº 65/88:

A cláusula terceira do Convênio ICM nº 65/88 assegura às industrias o direito à manutenção e utilização dos créditos do ICMS decorrentes das aquisições de matérias-primas, produtos intermediários e materiais de embalagem para emprego no processo produtivo de mercadorias destinadas à Zona Franca de Manaus, remetidas com isenção do imposto, conforme abaixo:

Cláusula terceira
– Fica assegurado ao estabelecimento industrial que promover a saída mencionada na cláusula primeira a manutenção dos créditos relativos às matérias primas, materiais secundários e materiais de embalagens utilizados na produção dos bens objeto daquela isenção. (grifamos)

Ocorreu que o Convênio ICMS 06/90 revogou a cláusula terceira acima, conforme expressa:

Cláusula primeira – Fica revogada a Cláusula terceira do Convênio ICM nº 65, de 06 de dezembro de 1988.

Contudo, tal convênio revogador está com seus efeitos suspensos por Medida Cautelar proferida pelo STF na ADIN nº 310/90, de autoria do Estado do Amazonas.

Portanto, atualmente,  estão em pleno vigor as disposições da cláusula terceira do Convênio ICM nº 65/88.

Cabe observar que alguns Estados da Federação vêm resistindo ao cumprimento da decisão cautelar do STF, não admitindo a manutenção e utilização dos créditos fiscais do ICMS decorrentes das aquisições de matérias-primas, produtos intermediários e materiais de embalagem para emprego no processo produtivo de mercadorias destinadas à Zona Franca de Manaus, remetidas com isenção do imposto.


2.3 – O Decreto-Lei nº 288/67

Em outra via, a legislação da maioria dos Estados, no que diz respeito à questão, adotou a postura de respeito à decisão do STF, mantendo em sua legislação a manutenção e utilização desses créditos para os estabelecimentos industriais, aos termos da cláusula 3ª do Convênio ICM 65/88, entretanto, negando-os em relação aos estabelecimentos simplesmente comerciais.

O Decreto-Lei nº 288/67 coloca em patamar de igualdade, para todos os efeitos fiscais, as remessas de mercadorias de origem nacional para consumo ou industrialização na Zona Franca de Manaus, a exportações brasileiras para o estrangeiro, nos seguintes termos:

Art 4º   A exportação de mercadorias de origem nacional para consumo ou industrialização na Zona Franca de Manaus, ou reexportação para o estrangeiro, será para todos os efeitos fiscais, constantes da legislação em vigor, equivalente a uma exportação brasileira para o estrangeiro.

Portanto, se forem consideradas as disposições da norma retro mencionada, que equipara as vendas para a Zona Franca de Manaus a exportações, haveria a desobrigação das empresas industriais ou comerciais efetuarem o estorno proporcional dos créditos do ICMS relativos às operações anteriores a estas remessas, já que, conforme o § 2º do art. 21 da Lei Complementar nº 87/96, não se estornam créditos referentes a mercadorias e serviços que venham a ser objeto de operações ou prestações destinadas ao exterior.

Cabe mencionar que a Emenda Constitucional nº 42 assegurou constitucionalmente a garantia da manutenção dos créditos do ICMS nas exportações através da nova redação dada a alínea “a” do inciso X do § 2º do art. 155 da Carta Magna.

Decorre do art. 4º do Decreto nº 288/67 questionamentos que dizem respeito à sua aplicabilidade no âmbito do ICMS.

Especificamente em relação a esse tema, a doutrina é bastante escassa e, pelo que se sabe, até o presente momento tal matéria não foi objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal.

 

Sem analisar questões específicas, o Superior Tribunal de Justiça, em sede de Recurso Especial, decidiu que as remessas de mercadorias para a Zona Franca de Manaus são, para todos os efeitos fiscais, equivalentes a uma exportação para o exterior (RE 34.388/SP – DJ 19/05/1997 e RE 74.814/SP – DJ 24/08/1998).

Pertine dizer que tais decisões isoladas dessa egrégia casa de justiça – STJ, longe de se traduzirem na palavra final sobre o tema, não analisaram especificamente a matéria sob o contexto de “estorno/manutenção de créditos decorrentes de convênios de ICMS”, além do que não esboça efeitos vinculantes, exceto entre as partes envolvidas.

Pois bem!

O ICMS é tributo de competência estadual.

A Constituição de 1988, em seu art. 155, § 2º, inciso XII, alínea “g”, só admite a concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais por deliberação dos Estados e do Distrito Federal mediante convênio.

Apesar do veto ao art. 28 da Lei Complementar nº 87/96, que estabeleceria a forma como os Estados poderiam conceder o benefício fiscal da manutenção e utilização dos aludidos créditos fiscais do ICMS, a Constituição de 1988 recepcionou a Lei Complementar nº 24/75, que em seu art. 1º dispõe que “as isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias serão concedidas ou revogadas nos termos de convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal, segundo esta Lei”, acrescentando no seu inciso IV: “quaisquer outros incentivos ou favores fiscais ou financeiro-fiscais, concedidos com base no Imposto de Circulação de Mercadorias, dos quais resulte redução ou eliminação, direta ou indireta, do respectivo ônus”.

3. Conclusão

Portanto, no que pertine ao ICMS, fica clara a incompatibilidade entre as disposições do art. 24 do Decreto-Lei nº 288/67 com o art. 155, § 2º, XII, “g” da Constituição Federal, e com o art. 1º da Lei Complementar nº 24/75, e, por conseguinte, com a Cláusula 3ª do Convênio ICM nº 65/88.

A se considerar a aplicação do art. 24 do Decreto-Lei nº 288/67, não haveria nenhum sentido a existência de convênios que tratam de benefícios nas operações com destino à Zona Franca de Manaus.

Importante ressaltar que, nas operações de mercadorias industrializadas com destino à Zona Franca de Manaus, além da isenção na saída preconizada na cláusula primeira do Convênio ICM nº 65/88, existe o benefício do crédito presumido no destino, autorizado na cláusula quarta do aludido convênio.

Note-se que tal crédito presumido já se equipara à regra da manutenção de créditos na exportação, onde não existe a figura do crédito presumido.

Portanto, nessas operações, a concessão de isenção nas saídas, o crédito presumido no destino e, além disso, a manutenção irrestrita de créditos pela entrada por estabelecimentos industriais e/ou comerciais – remetentes das mercadorias – significaria exorbitar o benefício, além até dos benefícios decorrentes da exportação.

Além disso, considerar a aplicação do art. 4º do Decreto-Lei nº 288/67, ou seja, equiparar as saídas para a Zona Franca de Manaus para todos os efeitos fiscais às exportações, no âmbito do ICMS, significaria abrir a possibilidade de os governos estaduais exigirem da União a compensação do ICMS, quer pelo fundo de compensação pela exportação de produtos industrializados – FPEX, conforme inciso II, do art. 159, da Constituição Federal, quer por qualquer outro fundo de compensação pela desoneração das exportações ou outros incentivos existentes.

Isto posto, diante dessas incompatibilidades do Dec. 288/67 tanto a nível constitucional como a nível legal, em relação à possibilidade de manutenção irrestrita dos créditos de ICMS nas remessas de mercadorias para a Zona Franca de Manaus, e para que os Estados não venham a sofrer prejuízos, entendemos que, nessas operações/prestações, as regras de isenção, manutenção e estorno de créditos deverão estar plenamente submetidas aos ditames de suas legislações internas, orientadas pela Constituição Federal, LC 87/96, LC  24/75, e, especialmente, pelas disposições da Cláusula 3ª do Convênio ICM nº 65/88, consideradas as decisões liminares ou de mérito do STF, notadamente, em sede da ADI 310/90.

FONTE: Revista eletrônica  Jus Navigandi – http://jus.com.br

*Francisco das Chagas Barroso é Auditor Fiscal – Pós Graduado em Direito Público

franchaba@bol.com.br

PERFIL e ÍNDICE de ARTIGOS de FRANCISCO DAS CHAGAS BARROSO

NOTA DO EDITOR: Os textos dos articulistas não reflete necessariamente a opinião do BLOG do AFR, sendo de única e exclusiva responsabilidade de cada autor.


3 Comentários to “Créditos de ICMS e a Zona Franca de Manaus”

  1. Muito bom!!! Parabéns

  2. Francisco .

    Muito ótimo o artigo!

    sds.,
    Raphael Alves do Amaral

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