Choque de civilizações

 João Francisco Neto

Passados alguns dias dos trágicos atentados terroristas ocorridos em Paris, o mundo ainda se encontra em estado de perplexidade diante de tamanha violência praticada contra pessoas inocentes que, a rigor, apenas se divertiam. De certa forma, todos fomos vítimas desses monstruosos atentados. Sob o pretexto de defender os dogmas de fé do Islã, os terroristas acabam por alimentar as teses ultraconservadoras dos partidos da extrema-direita europeia, que, dessa forma, veem confirmadas suas previsões alarmantes.  Já faz algum tempo que a Europa vem experimentando profundas tensões, em virtude do aumento das populações muçulmanas em seu território, notadamente na França, na Alemanha e na Inglaterra. É preciso ter em mente que o afluxo desses povos não se deu de forma espontânea; na maior parte, foi o resultado de uma selvagem política colonial praticada pela própria Europa. Durante a 1ª Guerra Mundial os povos árabes foram convencidos pela França e a Inglaterra a lutar contra os turcos, com a promessa de obterem a liberdade após a guerra. O acordo – “Sykes-Picot” – não foi cumprido e quase todo o mundo árabe foi simplesmente partilhado justamente entre as duas potências europeias (França e Inglaterra), que, de forma arbitrária, dividiram a região entre vários países, com fronteiras artificiais, como Jordânia, Líbano, Síria, etc. Para o povo árabe, esses fatos criaram profundo ressentimento e revolta, aumentados depois pela criação forçada do Estado de Israel, em desfavor dos palestinos. Mais tarde, o processo de descolonização envolveu acordos e concessões mútuas, que permitiam o livre fluxo de habitantes das antigas colônias árabes; daí a principal razão pela qual existem tantas pessoas de origem árabe naqueles países europeus. Muitos não são imigrantes, pois já nasceram na Europa; mas, ainda assim, não se sentem europeus e vivem num mundo à parte, numa atmosfera de exclusão, preconceito e rejeição. Nada justifica atos terroristas, mas esse breve relato nos dá conta de que toda essa confusão não veio do nada, assim de uma hora para outra.

Em 1996, Samuel P. Huntington (1927-2008), destacado pensador político americano e professor de Harvard, publicou um livro cujo título é “O Choque de Civilizações”. A tese fundamental do livro é que, com o fim da Guerra Fria, surgiram outras tensões mundiais, que têm como base a diversidade de civilizações, e não mais os conflitos entre os Estados. Huntington considera que não existe uma única civilização mundial; para ele, as pessoas são divididas de acordo com critérios culturais e religiosos, de forma que a identificação mais ampla dos povos se dá com sua respectiva cultura, língua, religião e história. Nessa linha, Huntington achava que o mundo estaria dividido entre sete ou oito “grandes civilizações”: a europeia ocidental, que inclui a América do Norte e a Austrália; a cristã ortodoxa (Rússia e países periféricos); a sino-japonesa; a islâmica; a hindu; a africana; e a latino-americana. Segundo a perspectiva de Huntington, dentre todas essas civilizações, aquela que representaria o maior problema seria justamente a islâmica, cujos adeptos têm uma relação primária e intrínseca com a religião muito mais forte do que com o Estado-nação. Como regra geral, a cultura do Islã não se mostra receptiva aos ideais liberais, como a democracia, os direitos humanos, o pluralismo, etc., ou seja, vivem num mundo pré-Iluminismo. Para Huntington, no mundo árabe os regimes, ainda que sob forte liderança, seriam frágeis a ponto de serem ameaçados por massas de jovens cooptados por extremistas fanáticos e religiosos, como os integrantes do grupo Estado Islâmico.

Em 1978, o escritor palestino Edward Said (1935-2003) lançou uma obra clássica sobre esse tema: “Orientalismo – O Oriente como invenção do Ocidente”. Nesse livro, Said demonstra como ocorreu o processo de “construção” do imaginário oriental, que, elaborado sob um olhar europeu, era visto sob o signo do exotismo, da inferioridade, e da incapacidade de convivência pacífica, entre tantos outros estereótipos de cunho negativo. De outro lado, veja-se o caso da Turquia, um país de maioria muçulmana, que há décadas vem empreendendo um enorme esforço para se ocidentalizar e integrar-se à União Europeia, mas encontra crescente e seguida resistência. Nesse mesmo contexto, milhões de muçulmanos que habitam os territórios dos países europeus enfrentam forte preconceito e discriminação no seu cotidiano, ainda que muitos sejam cidadãos nascidos na Europa, como foi o caso dos terroristas que atacaram Paris. Aí está, então, um breve panorama do complexo choque de civilizações de que nos falava Samuel Huntington. Por fim, vale aqui relembrar uma frase do escritor inglês George Orwell (1903-1950): “Liberdade é o direito que se tem de dizer coisas que os outros não querem ouvir”. O problema é que, como a intolerância das pessoas aumentou muito, o exercício ilimitado da liberdade pode ser muito perigoso, como o caso dos jornalistas do “Charlie Hebdo”.

jfrancis@usp.br

* Agente Fiscal de Rendas, mestre e doutor em Direito Financeiro (Faculdade de Direito da USP)

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