A casa dividida

jfrancisconewJoão Francisco Neto

“Uma casa dividida contra si própria não pode permanecer de pé”.  Com esta frase profética, baseada numa passagem bíblica, Abraham Lincoln (1809-1865), então candidato ao Senado dos Estados Unidos, no dia 16 de junho de 1858, proferiu um discurso que entraria para a história. Não era um simples discurso de candidato, e sim uma premonição, uma antevisão do que aconteceria com a nação americana caso insistisse em permitir que sua população continuasse dividida em homens livres de um lado e escravos, de outro. Com esse discurso, Lincoln lançou um desafio à nação americana, como se fora um grito guerra, que sacudiu o Norte – contrário à escravidão – e o Sul, onde a escravidão, além de legal, representava um tradicional modo vida, do qual a população branca não admitia abrir mão. Não deu outra: a poderosa fala de Lincoln acendeu o estopim que, em seguida, iria deflagrar a Guerra Civil (1861-1865), que levaria à morte mais de 700 mil soldados, além de um número não identificado de civis, todos dentro do território norte-americano. A libertação dos escravos só viria em 1863, quando Lincoln, já como presidente da República, assinaria o Ato de Emancipação, para dar a liberdade a cerca de 4 milhões de escravos concentrados nos Estados do Sul. Na prática, a liberdade só foi concedida em 1865, com a aprovação da 13ª Emenda Constitucional.

No Brasil, a extinção definitiva da escravatura só viria ocorrer no dia 13 de maio de 1888, ocasião em que se estima que houvesse cerca de 700 mil escravos, em razão das leis anteriores que já vinham aplicando medidas para minimizar o número de cativos (Lei dos Sexagenários, Lei do Ventre Livre, etc.). Ao contrário dos Estados Unidos, a libertação dos escravos no Brasil se deu num contexto mais ameno, por assim dizer. Por aqui, houve descontentamento por parte de fazendeiros e políticos conservadores, mas nada que, nem de longe, se assemelhasse à problemática americana.  Costuma-se dizer que só os sulistas americanos eram racistas; na verdade a população do norte também o era. O fato é que, por causa de suas lavouras, o Sul considerava que o escravo era uma peça fundamental, ao passo que o Norte industrializado só conseguia desenvolver suas atividades por meio de trabalhadores assalariados, daí serem contrários à escravidão.  A questão racial nos Estados Unidos continua pendente, com profundos focos de tensão, longe de serem solucionados.

No Brasil, desde a época da abolição, adotou-se a prática de considerar que nunca houve um problema racial entre nós. Por muito tempo, espalhou-se por todos os cantos a falsa propaganda oficial de que éramos “a maior democracia racial do mundo”. Após a “libertação”, a maioria dos ex-escravos foi rapidamente enxotada das antigas fazendas pelos proprietários, aborrecidos com o “prejuízo” causado pela Lei Áurea. Sem instrução, sem profissão e sem recursos, havia muito pouca coisa que aquelas pessoas pudessem fazer nas cidades; logo, passaram a ocupar morros e áreas periféricas, onde se encontram até hoje.

Por parte do governo e da sociedade, não houve uma única palavra oficial acerca de ações afirmativas ou quaisquer outras providências para promover a integração daquele imenso contingente de pessoas relegadas à própria sorte. Sem perspectivas e sem apoio, o futuro não poderia ser outro: um círculo vicioso de favelas, miséria, violência, etc. Na época, o debate girou apenas sobre a possibilidade de indenização dos antigos proprietários de escravos. Por essas e por outras a “casa brasileira” permanece dividida, à espera de um resgate, a ser orientado por outro memorável discurso de Lincoln (na segunda posse):

Sem malícia contra ninguém; com caridade para com todos; com firmeza no direito, que Deus nos permita ver o certo, nos permita lutar para concluirmos o trabalho que começamos; para fechar as feridas da nação”

A diferença é que, por aqui, o trabalho ainda está por começar; não sem razão, temos pouca coisa a comemorar no dia 13 de maio.

jfrancis@usp.br

* Agente Fiscal de Rendas, mestre e doutor em Direito Financeiro (Faculdade de Direito da USP)

ARTIGOS de JOÃO FRANCISCO NETO

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2 Comentários to “A casa dividida”

  1. Por aqui, pela ação deletéria de alguns que querem dividir para reinar, a casa apresenta divisões que, a qualquer momento, poderão transforma-la em uma fogueira que irá, sem sombra de dúvida, colocar em cheque a estabilidade social do país. Sem querer ser profético se permitirmos que esse grupo de sacripantas coloque combustível na fogueira iremos ver a frase de João Baptista Figueiredo se tornar realidade!!!! Uma forma de evitar isso e criar condições saudáveis para os deserdados da sorte conheçam e colaborem com “AMIGOS DO BEM”!!!! Lembrem-se de que a união faz a força!!!!

    • Prezado João Siegfried,

      Agradeço-lhe pela atenção dedicada ao texto.
      No Brasil, o debate sobre essa explosiva divisão quase não é levado em frente.
      De certa forma, vastos setores da classe média procuram “resolver” o problema refugiando-se nos condomínios fechados.
      Todavia, o estoque de material explosivo só aumenta, dia a dia, e não vai longe o dia em que o estopim será aceso.

      João Francisco

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