Antônio Sérgio Valente
A descoberta de um erro em axiomas ou primeiros princípios baseados em fatos é como a quebra de um feitiço. Desaparecem o castelo encantado, a montanha escarpada, o lago flamejante. Os caminhos que conduzem à verdade, e que imaginávamos tão longos, tortuosos e difíceis, revelam-se como são: curtos, abertos e fáceis.
(Henry Bolingbroke, in The works of Lord Bolingbroke, conforme O Livro das Citações, de Eduardo Giannetti)
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Várias contradições permeiam o julgamento do mensalão, algumas já apontadas nos artigos precedentes, outras que arrepiam até os fiscais de pesos e medidas, ora para muito mais, ora para muito menos, mas uma assertiva em particular, que acabou se desdobrando em duas incoerências, talvez as mais relevantes do caso, ainda implora melhor análise.
Vamos a ela: a unanimidade dos ministros do STF entendeu que os recursos espúrios serviram para comprar a base aliada, a consciência de parlamentares, o apoio a projetos do governo, sempre com o objetivo de aprovar, no Congresso Nacional, a polêmica Reforma da Previdência, debatida e sacramentada exatamente nos meses em que foram pagas as mais expressivas mesadas.
Tal assertiva fundamentou presunções incriminatórias de alguns réus do polo ativo, o corruptor, mas curiosamente (e aqui vai a primeira contradição), não foi utilizada para espraiar acusações e condenações por toda a base aliada corrompida, que passou ilesa, em sua maior parte, pela peneira grossa da CPMI dos Correios, embora o MP e o STF pudessem ter agido no processo a fim de corrigir o corporativismo, mas não o fizeram, ou, se o fizeram, não lograram êxito, eis que não houve o espraiamento.
Ora, ou bem a premissa é verdadeira, hipótese deve alcançar todos os envolvidos, ou então é falsa, e, neste caso, não deveria ser sequer pronunciada. Em outras palavras: ou o STF positiva a premissa de que o mensalão serviu de fato para comprar as consciências da base aliada e incrimina todos os destinatários dos R$ 153 milhões (número mencionado, durante uma das sessões, pelo próprio presidente do STF), ou então, se condenar apenas os destinatários de menos de 5% do valor total e 2% dos parlamentares da base aliada, como está fazendo, que desdiga a premissa (e, claro, as presunções nela estribadas), eis que assumidamente não tem como prová-la (se tivesse, condenaria a base aliada corrompida por inteiro).
A segunda contradição é ainda mais grave: se a base aliada votou de fato com a consciência comprada, se aprovou pontos polêmicos da Reforma da Previdência, sob o efeito de corrupção passiva, e se os magistrados reconhecem, admitem e alegam esse fato em seus votos, como o fizeram, ainda que tenham concedido uma espécie de anistia tácita à maior parte dessa mesma base corrompida, então a boa e simples lógica indica que também o ato jurídico produzido sob corrupção deveria ser declarado nulo de pleno direito, senão em sua totalidade, pelo menos quanto aos pontos comprados, aos quais se chega facilmente por ilação e constatação: os mais polêmicos, aqueles que mais ofenderam as expectativas de direitos e os direitos adquiridos, cujas aprovações foram muito estreitas e não teriam ocorrido se não fossem as compras de consciências.
Não é difícil identificar os dispositivos comprados. Alguns casos eram escandalosos, notórios, dispensam até prova, foram estampados em todos os jornais da época, e o próprio STF é testemunha disso e tem como levantá-los facilmente, eis que ações sobre aquelas matérias discutíveis, que desceram goela abaixo dos atingidos, tramitam naquela esfera judiciária e em outros tribunais até hoje.
Todavia, alguns dos próprios magistrados que votaram alegando a compra de consciências da base aliada, a começar pelo ilustre relator, afastaram a hipótese de anulação ou ineficácia de quaisquer leis votadas pela corrompida base aliada,embora admitindo as corrupções ativa e passiva, que segundo eles não interferem na validade. O ministro Gilmar Mendes foi até bem incisivo ao afirmar, durante o julgamento, que é descabida a pretensão de tornar inválida ou declarar ineficaz qualquer lei que tenha sido produzida sob corrupção, e que sequer eventual Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) seria cabível, pois esta deve apegar-se exclusivamente a aspectos constitucionais das normas, e não seria este o caso. Entende o ministro que o STF só pode apreciar por ADIN emenda à CF, quando esta violar as limitações estabelecidas pelo poder constituinte. Vários outros ministros assim também se manifestaram durante o julgamento, com assertivas mais ou menos assim: não há a menor possibilidade de anulação da norma, invalidar os seus efeitos, torná-la ineficaz, o país não corre esse risco.
Essa visão pobre do direito, extremamente legalista, insensível às consequências dos atos corrompidos, ignora toda a evolução doutrinária ocorrida a partir do século XIX no que respeita ao problema da decidibilidade de conflitos e aos modelos teóricos aplicáveis. A exegese jurídica, quando se depara com normas contraditórias que impedem a solução de determinado problema, ou mesmo com ausência de previsão legal, isto é, em face de lacuna legislativa, deve ser suprida por exegese sistemática que leve em conta o espírito do ordenamento.
Ora, se uma sentença judicial comprada, provada a corrupção, é anulável, ainda que transitada em julgado; se um habite-se municipal obtido por corrupção, provada esta, é anulável; se um levantamento fiscal por agente corrompido é revisado e refeito o respectivo Auto de Infração; se uma concorrência pública viciada por corrupção é nula, sequer chega a ser implementada, e se por acaso já o foi, é obrigatório o ressarcimento; se um contrato de compra e venda entre particulares, de um imóvel ou de um carro, celebrado mediante vício do consentimento, sem a vontade livre de uma das partes (por exemplo, sob coação, ou mediante falsificação ou outro tipo de fraude), é anulável, restituindo-se a titularidade ao antigo proprietário — então sabe-se perfeitamente qual é o espírito do ordenamento jurídico, qual o tratamento que mereceria um ato jurídico representado por uma EC (Emenda Constitucional) corrompida, comprada, obtida por suborno, ainda que a lei não tenha previsto a hipótese.
Em outras palavras, se num determinado ordenamento os atos jurídicos imperfeitos, sejam judiciais, públicos ou negociais, são nulos ou anuláveis, pois há expressa previsão legal no Código Civil e em normas de Direito Administrativo, mas se curiosamente leis, que são atos jurídicos por excelência, legislativos, quando obtidas mediante vícios da vontade, porém de conformidade com os limites constitucionais, não são anuláveis, sequer através de ADIN, simplesmente porque não há lei a respeito de lei corrompida (e por lei entenda-se o sentido amplo, incluindo as Emendas Constitucionais), então temos uma evidente lacuna no ordenamento.
Ora, essa lacuna pode e deve ser suprida com interpretação sistemática, com a aplicação dos modelos hermenêuticos teóricos. Caso isto não seja feito, o STF estará rubricando e autenticando, dando validade e eficácia a normas obtidas mediante vício da vontade, da consciência comprada. Ora, é um absurdo que o STF se disponha a esse papel. Isso é praticamente uma conivência. O STF não pode omitir-se numa questão relevante como essa, mormente no Brasil, com tantas Assembleias, Câmaras e Executivos degradados que pululam por aí, conforme se noticia amplamente, em regime de podridão ética, gerando emendas constitucionais, leis, decretos e portarias mediante subornos.
É o mesmo que dizer aos corruptores: olha, se vocês e os políticos e governantes que vocês comprarem forem pegos, serão punidos, mas fiquem tranquilos, as leis compradas valerão, serão boas, firmes e valiosas, apesar dos crimes, façam bom proveito…!
Ora, se nos permitem levar adiante a ironia, isso vai produzir um efeito péssimo no submundo político: vai valorizar o preço das leis no mercado da corrupção…!
Ironias à parte, perde o STF uma ótima oportunidade, talvez a melhor de toda a sua história, não apenas de interferir na postura ética da sociedade, especialmente do meio político, mas também de fazer algo nobilíssimo e que é da sua estrita competência: suprir, com boa, firme e exemplar jurisprudência, uma grave lacuna do ordenamento.
No próximo artigo discutiremos, ainda que superficialmente, algo sobre os modelos teóricos de decidibilidade, algumas funções dos métodos interpretativos, e se isto pode ou não ser feito no bojo de uma ação penal de competência do STF. Até…
ARTIGOS de ANTONIO SÉRGIO VALENTE
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