Robin Hood às Avessas — Parte II

                                                                     Antônio Sérgio Valente

Em artigo anterior sobre a Substituição Tributária (Robin Hood às Avessas — Parte I), comentamos as alterações implantadas pelo governo paulista, a partir de 2008, sobretudo no que se refere à proibição de ressarcimento, nos casos de venda a consumidor final com margem inferior à prevista, que geralmente alcança produtos destinados às classes mais pobres e estabelecimentos que praticam margens mais baixas, e, por outro lado, à dispensa de recolhimento complementar do ICMS, nos casos em que a margem efetiva é superior à prevista, beneficiando produtos destinados à elite, comercializados por varejistas de alta classe, que em razão disso operam com margens mais elevadas.

Aludimos, naquele texto, a uma série de distorções causadas pela mudança na sistemática, e agora, neste artigo, tentaremos detalhar a primeira delas, relacionada aos tipos de mercadorias.

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Antes, porém, como muito bem lembrou um leitor, convém frisar que continuam permitidos os ressarcimentos relativos a mercadorias oneradas por ocasião da entrada ou aquisição, cujos fatos geradores não se concretizaram em saídas para consumidores finais paulistas, em razão de: a) furto, deterioração, vencimento do prazo de validade, quebras, etc; b) saídas para outras UFs; e c) saídas isentas ou não tributadas (exportação, Zona Franca de Manaus, etc.) Sublinhamos que tanto no artigo anterior como neste, referimo-nos exclusivamente à proibição de ressarcimento, nos casos de venda a consumidor final com margem inferior à prevista, a partir de 23/12/2008. Antes era permitido. Vale dizer, antes dessa data a distorção também ocorria, mas podia ser sanada, embora de forma extremamente complexa, mediante elaboração de complicadíssimas planilhas, às quais deviam ser apensadas montanhas de documentos e arquivos magnéticos, de tal forma que muitos contribuintes, sobretudo os de menor porte, raramente se encorajavam a pleitear os seus ressarcimentos. E note-se que até então a ST alcançava um número reduzido de itens: refrigerantes, cervejas, sorvetes, pneus e automóveis, basicamente.

O problema agora é muito mais grave. Além da maior abrangência, a sistemática vem acompanhada de uma mordaça administrativa: o contribuinte sequer pode pleitear o ressarcimento.

Mas vamos logo à primeira das distorções, conforme o prometido, que o espaço é curto.

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A legislação atual prevê que o ICMS relativo à última etapa de circulação — daquela enormidade de mercadorias que entrou na lista da ST, a partir de 2008 — seja pago, antecipadamente, mediante aplicação, sobre o preço de compra do varejista, de margem média ponderada, apurada e divulgada pelo governo, em muitos casos com apoio em pesquisas de preços elaboradas por entidades e associações empresariais. É o chamado IVA-ST (Índice de Valor Adicionado Setorial).

Mas os economistas sabem quão ilusionistas são as médias. Um famoso ex-ministro costumava dizer que média é enfiar a cabeça do paciente no forno, os pés na geladeira, um termômetro no reto, e diagnosticar — se a temperatura ficar por volta de 36,5ºC — que está tudo bem com o infeliz.

Parece piada, mas o ministro estava certo, é a mais pura verdade.

As médias, ainda que ponderadas, distorcem a tributação por vários motivos. Vejamos o primeiro deles:

Especificidades das Mercadorias

Ainda que certas mercadorias pertençam ao mesmo grupo, vale dizer, que sejam identificadas com a mesma posição fiscal, que tenham a mesma descrição genérica e a mesma finalidade, costumam apresentar índices de valor agregado diferentes, em função de uma série de fatores: marca, qualidade, propaganda, tecnologia, investimentos em pesquisa, sistema de distribuição, público-alvo, etc.

Por exemplo, um desodorante mequetrefe, vendido a R$ 4,00 numa farmácia ou supermercado, pode estar embutindo uma margem bruta sobre insumos de 50% a 100% no máximo, enquanto um outro, de marca famosa, sofisticada, comercializado numa perfumaria charmosa dos Jardins, onde é vendido a R$ 20,00, pode estar embutindo uma margem bruta sobre insumos de até 500%, já que a maior parcela do valor agregado a este produto não é matéria-prima nem embalagem, nem transporte — é marca, é propaganda, é pesquisa, é tecnologia, enfim, rubricas que não geram créditos de ICMS.

Digamos, para exemplificar, que a margem média ponderada, apurada e divulgada pelo governo, para esse tipo de produto, seja de 177,19%, como consta na Portaria. O desodorante mequetrefe pagará ICMS sobre 177,19% de margem bruta, que, aliás, ele não teve (sua margem, vimos, era de 50% a 100%), enquanto o desodorante da marca sofisticada pagará sobre os mesmos 177,19% de margem bruta, embora tenha embutido no preço 500% de margem. Vale dizer, o desodorante mequetrefe está sendo tributado mais do que devia, e o desodorante da elite muito menos.

Assim, em relação ao produto mequetrefe, mais consumido pelas classes mais baixas de renda, pela massa de eleitores, o governo está cobrando mais do que devia, mais até do que a Constituição Federal e o Código Tributário Nacional permitem, eis que o ICMS é tributo sobre valor acrescido, abate-se numa etapa o montante cobrado nas anteriores, mas no caso da ST a etapa final está superestimada, acima da efetiva. Em outras palavras, o governo está cometendo um excesso de exação em relação ao produto mequetrefe, está escorchando o consumidor desse produto, cobrando mais do que lhe era permitido cobrar. Por outro lado, em relação ao produto sofisticado, está deixando de cobrar o que a CF e o CTN determinam, ou seja, está permitindo que alguém se locuplete.

Ora, as duas situações são igualmente recrimináveis. Se elas se compensassem entre si, como pressupõe o governo, se o pobre usasse num dia o desodorante mequetrefe, e no outro o da marca de luxo, e se o cidadão mais abastado fizesse o mesmo, a injustiça até que não seria tão grande, mas sabemos que isso não acontece na vida real.

E há muitos outros casos similares ao exemplo. As variações nas margens de valor agregado sobre os insumos ocorrem praticamente em todos os tipos de mercadorias, nuns mais, noutros menos. De pó de café a lâmpada, de travesseiro a bicicleta, de caneta esferográfica a sabão em pó, basta observar as variações nos preços de produtos similares nas gôndolas da vida e imaginar os insumos; não é possível que certas mercadorias com tão pouca diferença na composição e na estrutura de custos diretos, porém com preços tão discrepantes, tenham a mesma margem bruta sobre insumos.

O problema sobre o qual o governo precisa refletir é que, quando se trata igualmente os desiguais, comete-se tanta injustiça como quando se trata desigualmente os iguais.

No próximo artigo, seguiremos com a análise das distorções da Substituição Tributária. Até lá.

asgvalente@uol.com.br

ARTIGOS de ANTONIO SÉRGIO VALENTE

NOTA:
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3 Comentários to “Robin Hood às Avessas — Parte II”

  1. E olhe, meu caro Valente, que já se levantou, quando da discussão da ADIN 2777-SP, que, com a cobrança pela média ponderada, “a sociedade” (sobre quem repercute o tributo) suporta a mesma carga tributária. Daí porque sem razão de ser o ressarcimento por diferença de preço. Pelo que você expôs aqui magistralmente, pouca diferença faz aos olhos do governo que eu coma um frango e você nenhum: na média comemos meio frango cada!

  2. Muito boa a observação, colega Sérgio. abs, TeoFranco

  3. Pois é, Mumare, faz tempo que não o vejo, abração. Fiquei muito feliz com o seu comentário, pq você é papa no assunto.
    É o modelo neoliberal. Burrocracia e arrecadação, é só o que importa.
    Justiça fiscal…? Eles não se importam muito com isso.
    A série inteira terá seis artigos. Quatro já estão publicados. O assunto é extenso e complexo.
    Aparece por lá, para um almoço ou café. Estou no mesmo endereço, agora só escrevendo. O celular também é o mesmo. Obrigado pelo comentário.

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