Corrupção: Sociedade Anônima

Carlos H. Peixoto

Finados. Tempo de refletir sobre a morte, destino irrevogável dos viventes. A Morte e os Impostos são as únicas certezas desta vida. Começa-se a morrer desde o nascimento, e pagam-se impostos mesmo depois da morte (alguém tem que honrar as taxas da sepultura, senão o defunto pode ser despejado).

E por falar em tributos, cá entre nós, pra quem vive do munus de fiscalizá-los, não há local mais apropriado para meditar acerca do Dever-Poder de Lançar do que uma visita à carceragem do Ponto Zero, em Benfica, no Rio de Janeiro. É para lá que foram levados Teixeirinha e sua turma, num total de oito auditores, todos muito competentes e cheio de boas intenções, das quais o inferno está lotado.

Fiscalização Bancária. Se você encara a função de fiscalizar tributos como aplicação técnica da lei, e não tem colarinho branco para pensá-la como Ação Direcionada e alinhada com a Política de um dado governo, melhor permanecer onde está. Gerentes — impossível viver sem eles — fogem da fiscalização de campo como o diabo corre da cruz. Atuar na pasta é tarefa para Manés; a onda do momento é gerir a ação fiscal. Existe um pensamento corrente nas Altas Esferas: se você não chegou ao topo da pirâmide depois de dez anos na carreira, é “porque é incompetente”.

Sem dizer palavra, acompanho o carcereiro, um cara sujo e feio que enverga um uniforme cheirando a bife de porco. Atravesso o portão de ferro com grades de meia polegada. Das paredes exala um odor de cigarro, sovaco e urina de rato.

Depois de me apontar a cela, o guarda retorna a seus afazeres, que consistem em nada fazer o dia inteiro, ler as mentiras escritas nos jornais enquanto finge vigiar o corredor. Fugir dali seria moleza, o reboco das paredes se esfarela como casca de pão dormido. Fugir pra quê, se o Judiciário tem o remédio, ainda que custe caro?

Aproximo-me das grades onde estão trancafiados Teixeirinha e sua turma. A cela coletiva é de bom tamanho, mas mal iluminada e abafada, equipada com um pequeno banheiro, pia e chuveiro. Quatro dos oito fiscais jogam cartas. Deitado, Teixeirinha lê um livro, Confissões de um assassino econômico, de John Perkins. Outros três conversam, sentados num catre de cimento. Abatidos, falam sobre o próximo lote de restituição do Imposto de Renda. “Será que caí na malha fina?”, pergunta um deles. Ao notar que estava sendo observado, o Subsecretário levanta-se da cama, chega a cara magrela nas grades da cela e me pergunta:

— O que você quer?

— Vim fazer uma visita — respondi.

— Tem um cigarro? — pergunta o Sub.

— Tenho.

Vencidos os rituais de praxe, algumas tragadas e baforadas possibilitam que dois homens separados por um abismo se aproximem. Ligo o gravador e começo a entrevista:

— Como funcionava o propinoduto?

E o ex-homem forte da Fazenda me explica, com voz calma e professoral:

— Convenci o Governador Gasparzinho de que não podíamos deixar as ações fiscais, relativas a 400 empresas responsáveis por 90% da receita tributária do Estado, nas mãos de qualquer fiscalzinho metido a besta. Empresas importantíssimas, que recolhem milhões por mês, administradas por um time de feras, multinacionais, gente graúda, com bons contatos políticos em Brasília, com acesso direto a gabinetes de ministros, senadores, deputados. Você acha que basta ser aprovado em concurso público para que o Auditor possa fiscalizar qualquer empresa? Claro que não! Ora, a Administração não pode ser pega de surpresa com autos de infração impagáveis! A ação fiscal tem que ser direcionada. Tínhamos problemas ilimitados para recursos escassos. Cada roca com seu fuso, cada governo com seu preto. Precisávamos de dinheiro pra construir o Palácio da Administração. Se você não alimentar os cinco tubarões, eles te devoram vivo (Teixeirinha referia-se às cinco grandes empreiteiras que dominam as obras públicas no país). A receita estava estagnada. A solução foi centralizar ao máximo a informação, pra uniformizar as linhas de trabalho, evitando ações personalíssimas, longe dessa bobagem de lançamento vinculado. O auto de imposição de multas só poderia ser emitido depois de esgotadas as tratativas, de acordo com as diretrizes do Governo, e no momento oportuno.

Saquei. O lançamento tem que ser uma ação do governo, e o governo comia nas mãos de Teixeirinha e de sua Quadrilha pra não prejudicar os parceiros. Tudo na mais perfeita legalidade. Olhei para a cabeça chata do elemento e matutei: quem foi que inventou essa bobagem de falar que a ação fiscal pertence ao fiscal, pra justificar poderes que a Alta Administração não possui? O lançamento é um ato de interesse público, por isso a Constituição Federal e o Código Tributário elencam princípios que devem ser observados pelos agentes do Fisco, de baixo pra cima e de cima pra baixo.

Pausa para uma tragada. O discurso de Teixeirinha até que era moderno, antenado com as mais modernas técnicas da Administração Privada. Perguntei sobre o método de gerenciamento, como eles escolhiam as empresas que iam ser fiscalizadas.

— Bem, a coisa era complexa — falou o Ex-subsecretário, fazendo ares de entendido. — A informação descia do topo, e só do topo poderiam fluir as decisões. Não admitíamos desvios. Nós controlávamos os funcionários, emitindo ordens e instruções claras do que era pra ser executado, nos mínimos detalhes. Montamos uma carteira de clientes especiais na Inspetoria de Grande Porte. Criamos um Sistema azeitado, colocamos travas de acesso nos sistemas corporativos, o auditor não dava um passo fora do roteiro. Sem essa de autonomia. Nossos agentes eram escolhidos a dedo. Gente de confiança. E tem mais: antes de emitir o Termo de Início de Fiscalização, fazíamos uma reunião com a empresa. Chamávamos os responsáveis pelo Setor Contábil e Fiscal e dávamos uma dura nos caras: “Olha, a empresa de vocês será  fiscalizada. A meta do Auditor Fiscal, pelos nossos estudos, é emitir um Auto de Infração de US$ 5 milhões (lá a gente não falava em Reais), detectamos as seguintes irregularidades…” Daí mostrávamos os dados, advindos de cruzamento de inúmeras informações, nos mínimos detalhes, tudo ilustrado com muitas planilhas e gráficos. Era batom na cueca. O sujeito tremia nas bases, é claro. Ficava impressionado com nossa competência. “Vocês nos pagam US$ 2 milhões, a serem depositados pela matriz numa conta do Banestado, em Nova York”. Depois o nosso fiscal ia lá e lavrava um Auto de Infração de apenas US$ 1 milhão, valor limitado às irregularidades que havíamos determinado que fossem apuradas, senão o acordo fazia água. O contribuinte economizava US$ 2 milhões. Era pegar ou partir pra briga.

O mesmo esquema da Privataria Tucana, pensei. Ouviu-se a descarga do banheiro. Alguém bateu uma caneca na grade, gritou um palavrão, chamando o carcereiro. Os outros auditores, como alunos hipnotizados pela fala pausada do Ex-Subsecretário, acompanhavam a entrevista, atentos e em silêncio.

— Eles sempre pegavam, poucos iam pro pau. Pagavam a multa, satisfeitos, sem questionar. Para evitar problemas futuros, nossa equipe aproveitava a ocasião para prestar uma pequena consultoria, oferecendo dicas de benefícios, alertando a empresa acerca de procedimentos arriscados no âmbito fiscal. Normalmente, depois que a empresa virava nossa parceira, havia uma mudança de comportamento, pra melhor, refletido na arrecadação do Estado.

Teixeirinha deu uma longa risada. Depois o olhar ficou sério, e prosseguiu:

— Nossas reuniões eram chamadas de “Conselhinho”. Com esse sistema, o nosso grupo aumentou a arrecadação do Estado, que estava na faixa dos R$ 500 milhões, em 1999, para perto de R$ 800 milhões ao final de 2002, sem fazer alarde, apenas gerenciando a ação fiscal — gabou-se o ex-homem forte da Secretaria de Fazenda. — Interferíamos também nos processos que iam parar no Tribunal de Recursos Administrativos. Aquilo lá é uma Casa de vaidades jurídicas. Pra que serve o Tribunal Administrativo, se 90% dos processos tributários vão bater no Judiciário? Já que não podíamos acabar com o Conselho de Contribuintes, por causa da Constituição Federal, artigo 5º, essas bestagens de ampla defesa e contraditório, então modificávamos a legislação, trocávamos os conselheiros, reformulávamos consultas, emitíamos instruções normativas, tudo para que as decisões saíssem do jeito que queríamos, a favor ou contra o contribuinte, conforme o planejado.

Perguntei sobre a Guerra Fiscal e a política tributária do Estado para atração de investimentos, um dos temas caros para Teixeirinha, principal fonte de financiamentos de campanhas políticas.

— A Assembleia Legislativa aprovava tudo. A sociedade é anônima em questões tributárias. O Ministério Público e os deputados não sabem a diferença entre crédito presumido e diferimento. O que fazemos é complicado demais para eles entenderem. Não dá pra debater essas questões na Casa do Povo — ele deu uma risada, piscando rapidamente o olho esquerdo. — No fim das contas, ninguém gosta de pagar impostos. Então, se você oferece uma vantagem para o cliente, um desconto, um tratamento especial, um mimo, o empresário recolhe o que o Governo precisa de uma forma muito mais amigável. Agora, nunca começamos uma guerra, mas se os outros davam benefícios que ameaçavam a economia do estado, o que devíamos fazer? Recorrer ao Supremo? Concedemos benefícios ilegais, sim! Mas estávamos apenas nos defendendo. Depois do primeiro tiro, já não importa quem começou, guerra é guerra. Veja você, é preciso unanimidade no CONFAZ para aprovar um benefício tributário. Era mais fácil alterar um decreto, fazer um Acordo Especial de Tributação, que não podia ser publicado, é claro, pra não darmos munição a nossos inimigos, e dane-se o CONFAZ. Todos os estados fazem o mesmo. O STF não tem condições de julgar todos os benefícios ilegais. Se o Supremo resolve extinguir os benefícios ilegais concedidos pelos estados nos últimos vinte anos, algo em torno de R$ 30 bilhões por ano, o país torna-se inviável, investidores serão afugentados, corremos inclusive riscos inflacionários, as agências de crédito internacionais baixariam nossa nota, as bolsas quebrariam. Seria o caos!

— Quais foram as empresas beneficiadas pelo esquema? — perguntei.

— Pergunta errada, meu caro. Você quer me ver morto? Eu tenho família pra criar. Você acredita que vai mudar o mundo com essa entrevista, que vai acabar com a corrupção? Sem corrupção você não teria água encanada em casa, sem corrupção o jornal onde você trabalha já teria fechado as portas. Vivemos no País do Faz-de-Conta. No “seu” jornal você publica o que quiser? Ou apenas o que o patrão deixa? O que são as matérias pagas? Imprensa livre e independente, ora, conta outra! Sem corrupção, o Brasil trava.

Com um gesto largo, Teixeirinha aponta para si mesmo e para os outros:

— Em duas semanas, no máximo, estaremos de volta ao trabalho. Somos bois de piranha. Você acha que os principais beneficiários de nossos crimes contra a “ordem tributária”, os corruptores, os grandes financiadores de campanhas políticas, iriam aceitar uma lei de verdade, para ser aplicada contra eles mesmos?! A lei foi feita para não funcionar, portanto, ela funciona. Você tem ideia de quanto custa uma campanha para senador da república?

Fim do cigarro, fim da visita. As empresas que se beneficiaram do esquema montado por Teixeirinha nunca foram mencionadas. A coisa aconteceu no Brasil, não nos Estados Unidos.

 ***

Meses e anos se passaram. O escândalo acabou esquecido, em favor de outros mais cabeludos. Um dia li na internet que Teixeirinha e sua turma foram libertados. Quanto ao dinheiro desviado…

Nota: Esta é uma obra de ficção baseada em acontecimentos verídicos, que ficaram conhecidos como Propinoduto da Máfia dos Fiscais, amplamente divulgado pela imprensa em maio de 2003. A entrevista acima nunca aconteceu. Publicado originalmente no sítio da REFAZENDA2010 em 13/01/2004, com revisão crítica do autor em outubro de 2012.

chpeixoto@oi.com.br

ARTIGOS de CARLOS H. PEIXOTO

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