“fiscal novato é mais bobo do que bezerro novo, basta pôr um dedo na boca do bicho que ele chupa”
Minas são muitas. Minas são tantas, com seus buracos, estradas de terra a perder de vista, vilarejos e cidades grandes, que nas Minas convivem o novo, o antigo e o moderno, tudo ao mesmo tempo agora. Pra quem chega a Belo Horizonte, vindo do Vale do Aço pela BR 381, impossível não notar uma profusão de gatos que roubam energia da CEMIG, justamente no estado em que a energia, segundo o governo, sai quase de graça para o pobre. Enquanto isso, no extremo norte, a lamparina domina. No sertão das Minas, a Lei do Cão ainda vigora: de um lado o trabalho escravo nos fornos de carvão do Jequitinhonha, e no Centro-Oeste dos grandes fazendeiros, o assassinato encomendado de Auditores Fiscais do Ministério do Trabalho.
Deixemos de trololó e vamos ao causo, que o tempo ruge. O fato aconteceu lá pras bandas de Varginha. Como se sabe, fiscal novato é mais bobo do que bezerro novo, basta pôr um dedo na boca do bicho que ele chupa. Fiscal novato acredita em tudo que os antigos contam: da disposição do governo em investir no combate à sonegação, passando pelo programa de computador no qual basta apertar uma tecla e está pronto o Auto de Infração. O novato tem sua valia, já que, ansioso para se iniciar no ofício, sujeita-se aos piores serviços.
— Vocês vão contar o gado do Seu Anacleto. Mas tem que ser de madrugada, que o velho não dorme de touca — ordenou o Chefe.
E lá se foram os defensores do Erário — uma novata, em estágio probatório, o outro, veterano de longa data. O homem, mais largo do que um armário de quatro portas; a colega, na casa dos trinta, capa de revista, cabelos curtos, bolsa enorme, elegante, dona de centenas de pares de sapatos.
Quatro e trinta da madrugada, fazia um frio de lascar taquara. Chegando à fazenda, o fiscal gritou, irado:
— Sô Anacleto! Sô Anacleto!
Silêncio. Até os sapos se calaram. Estava um breu, não fossem os faróis do carro.
Uma luz se acendeu na casa, depois outra na varanda. Quem abriu a porta da sala, somente uma fresta pra botar os olhos de jabuticaba pra fora, foi uma velha, que os mandou aguardar.
Em seguida, o velho surgiu não se sabe de onde, vestia pijama listrado, chinelos arrastando pelo assoalho. O tal Sô Anacleto parecia não estar nada bem, pálido como um boneco de cera de Madame Tussot, a cara amarrotada, mais enrugada do que perereca desidratada.
— O que que ocês qué? — perguntou Seu Anacleto, a voz cavernosa de tanto pitar cigarro de palha.
Que o câncer se apiede de sua alma, pois os pulmões já foram pro saco — desejou o fiscal.
— Somos da Fiscalização Estadual. Viemos contar o gado — respondeu a fiel escudeira do fisco, mostrando a carteira reluzente.
— Inda agora, nesse adiantado da hora? — perguntou a dona, ajeitando o coque.
— É, nessa hora — grunhiu o gordo fiscal, que bem parecia haver engolido uma melancia, e de quando em vez cuspia um caroço.
— Deixa eles contá, minha veia. O currar tá bem aí — falou o fazendeiro, apontando para a escuridão, onde se ouviam uns mugidos, mas não se enxergava um palmo na frente do nariz.
Destemidos, os agentes intimaram o velho a acender as luzes do cercado, no que foram prontamente atendidos. Decidida a metodologia, vacas pra cá e bezerros pra lá, iniciaram a contagem. Meia hora de triagem, as luzes de repente se apagaram. O curral ficou mais preto do que a sombra do negrinho do pastoreio.
Ploft!
Algo mole e quente bateu no sapato da servidora. Enojada, ela se afastou, deslocando o bumbum torneado no quarto traseiro de um bezerro, que assustado a escoiceou; escoiceada, a fiscal deu de cara num monte de estrume fumegando de quente. Caída, e aos berros, vieram outras vacas e pisotearam a dama do fisco mineiro.
Pra danar a situação, os bichos se misturaram, colocando a perder todo o trabalho. Assustado com a revolução bovina, o parceiro gritou para o lado da casa:
— Acendam as luzes! Acendam as luzes! — enquanto acudia a colega, morrendo de rir por dentro, já que nem sempre quem te salva da merda é seu amigo.
Feita a luz, por obra do matuto, depois de uma pergunta idiota do Seu Anacleto, o estado da colega revelou-se lastimável. Do pescoço pra cima a servidora do fisco estava toda breada — impossível distinguir onde começava a merda de onde terminava a cara da colega.
Vida de fiscal fazendário é assim mesmo: merdas acontecem.
PERFIL e ARTIGOS de CARLOS H. PEIXOTO
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