Antônio Sérgio Valente
(…) por natureza, me inclino a crer que, onde há fumaça, há geleia de morango, e quase nunca fogo (…)
J.D. Salinger, in “Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira & Seymour, Uma Apresentação”, Ed. LPM, 2007, pág. 156)
No artigo anterior, tecemos críticas a três decisões preliminares do STF: quanto à data de início do julgamento do chamado valerioduto em pleno período eleitoral, à inversão da ordem genealógica dos acontecimentos (julgando antes o filho petista, de 2003, e depois, talvez, sabe-se lá quando, a mãe tucana, de 1998), e também quanto à inédita forma de votar (o fatiamento ou novelização dos votos). Salientamos que as três decisões conjuraram para transformar o julgamento numa espécie de apêndice do horário eleitoral das eleições municipais de 2012, configurando nítida e recriminável parcialidade.
Neste segundo ‘capítulo’, abordaremos alguns aspectos do mérito.
Presunções
É curioso observar a interpretação vacilante do MP e do STF com relação às presunções: utilizaram o conceito para cima, ou seja, para atingir parte da cúpula petista (José Genoíno), e parte do governo (José Dirceu), mas não o aplicaram para baixo, isto é, para alcançar todos os parlamentares da base aliada, limitando-se aos casos documentados (cheques) e aos que admitiram ter recebido os recursos para fins de custeio político-eleitoral de seus partidos.
Os ministros do STF foram claros em seus votos ao mencionar que o valerioduto servia para comprar o apoio da base aliada, mas curiosamente não aplicaram a presunção no sentido de espraiar as condenações sobre os parlamentares liderados pelos corréus confessos e/ou com provas documentais. E é óbvio que a base aliada não era composta apenas por aquela meia dúzia de congressistas apontados nas condenações. Era integrada por centenas deles. Mas onde estão as acusações e condenações dessas pessoas? A desculpa de que ficaram na peneira grossa da CPMI não pode ser aceita, pois o MP e o STF têm voz própria e independente.
Ora, mas então por que, mesmo admitindo que os recursos serviram para comprar o apoio da base aliada, tanto o MP como o STF não a condenam?
A resposta é simples: não o fizeram não por incompetência ou improbidade, mas sim por absoluta falta de provas. É que acusar com base em presunções um ou outro réu de relevância midiática é uma coisa, isso dá capa de revista e a opinião pública blinda o magistrado, mas adotar o critério com relação a uma ou duas centenas de parlamentares é quase uma revolução. Sem exagero.
Mas justiça não se aplica assim, vale para este, não vale para aquele. Ou bem o critério tem respaldo, ou não.
A propósito, vejamos o que é presunção. Segundo os dicionários, presunção é o mesmo que suposição, conjectura, suspeita, opinião baseada em probabilidade. Ou seja, não é sinônimo de prova. Afora os casos em que a lei expressamente atribui valor probatório a fatos presumidos (por exemplo, presunção de imputabilidade dolosa ou culposa ao agente embriagado), as demais presunções não têm valor probatório em nosso Direito Penal. Aliás, o Título VII — Da Prova, artigos 155 a 250 do CPP — sequer cita a palavra presunção. Isto porque as presunções não são admitidas em Direito Penal…!
E esta não é uma opinião pessoal do articulista. É o que ensinam as faculdades de Direito de todo o Brasil. É o que é acolhido pelo exame da OAB e pelas centenas de bancas examinadoras de concursos públicos jurídicos. É o que consta nos bons manuais de Direito. Por exemplo, no CPP Interpretado, de Julio Fabbrini Mirabete, Editora Atlas, já com dezenas de edições, conhecido e utilizado por boa parte dos profissionais do Direito, um calhamaço de 1902 páginas, em sua pág 453, tópico 155.1, ensina o seguinte: No processo criminal, ao menos para a condenação, os juízos aceitos “serão sempre de certeza, jamais de probabilidade, sinônimo de insegurança, embora possa a probabilidade ser caminho, impulso na direção da certeza”.
Ora, se presunção é a opinião baseada em probabilidade, e se esta não é admitida no processo criminal, a não ser quando acompanhada por outras provas, como podem os ministros do STF, com raras e honrosas exceções, citá-la em seus votos dezenas de vezes?
Com todo respeito a esses ministros, a convicção do magistrado não é tão livre e subjetiva como afirmam. Em matéria penal não se admite a analogia com o que ocorre em outros ramos do Direito, nem com a doutrina de outras pátrias e de outros tempos. O livre convencimento previsto no ordenamento jurídico-penal brasileiro deve ser motivado e respeitar as margens impostas pelo CPP, ou seja, a prova produzida nos autos. É a regra do art. 155: “O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial (…)” E o artigo vai mais longe ainda, ao determinar que o juiz não pode “fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação”, isto é, até pode utilizar os informes da fase investigativa, mas não apenas eles. Em outras palavras, é a prova produzida no contraditório que molda a convicção do juiz, e não as presunções. Estas sequer são cogitadas…! Presunção é probabilidade, é possibilidade, e não certeza.
Portanto, tem o julgador liberdade para formar sua convicção, mas essa liberdade tem limite objetivo: a prova produzida em contraditório judicial. É uma heresia, no Direito Penal brasileiro, falar em convicção lastreada em presunções, exceto quando estas estão expressamente previstas em lei.
Indícios
Nem mesmo os indícios (vestígios, sinais) podem ser aplicados em Direito Penal irrestritamente, pois se além da conclusão da ocorrência criminosa admitirem alguma outra conduta não tipificada penalmente, não se pode cogitar de condenação. Ou seja, os indícios conhecidos e provados podem robustecer a convicção condenatória, mas apenas e tão somente se permitirem provar por indução (raciocínio no qual de fatos particulares se tira uma conclusão genérica) a ocorrência de conduta de natureza criminosa. No entanto, se permitirem também outras condutas não criminosas não podem implicar em condenação.
E novamente não está aqui apenas a opinião pessoal e desprezível do articulista. O já citado e amplamente acolhido CPP Interpretado, que é uma espécie de sumário da boa doutrina e da melhor jurisprudência, em sua 11ª edição, página 617, item 239.2, in fine, ensina que: Não são suficientes para fundamentar uma decisão condenatória indícios isolados, que permitam uma explicação diferente, ou seja, de que o acusado poderia não ter praticado o crime.
Por exemplo, José Genoíno fazia reuniões com lideranças da base aliada para negociar apoios. Ora, é sabido desde o escândalo dos Correios que houve dois tipos de negociação provados: atribuição de cargos e funções em empresas e órgãos públicos, e estímulo financeiro (propina) à base aliada. A primeira conduta é ainda hoje adotada por todos os governos de coalisão do país, sejam municipais, estaduais ou federais, e embora criticável em certos aspectos, não é considerada criminosa, não está tipificada criminalmente. Já a segunda conduta configura crime de corrupção ativa e passiva. Logo, não é qualquer reunião entre lideranças do PT com pessoas da base aliada que por si só configura um ilícito. Há que se provar qual foi o assunto tratado na reunião. A mera prova de que houve a reunião e de que foram negociados interesses da base aliada não prova nada, pois em tese era possível que o assunto fosse o loteamento de cargos e funções, ou até questões de mérito ou estratégia relacionadas às reformas.
“Mas como fazer para separar o joio do trigo?”, devem estar perguntando alguns leitores. Ora, o ônus da prova é de quem acusa, embora o magistrado também possa fazê-lo, conforme o art. 156, incisos I e II, do CPP. Uma ata, um relatório, uma agenda com anotações comprometedoras, uma gravação, um e-mail esclarecendo determinado ponto da reunião ou da conversa, até mesmo um testemunho (mas de testemunha mesmo e não de corréu), um contrato talvez fosse ingenuidade demais, mas quem sabe uma planilha de prestação de contas, uns recibos codificados, enfim, tudo isso poderia comprovar a veracidade das acusações feitas pelos corréus.
Depoimento de Corréu
A palavra de corréu em juízo é interpretada pela doutrina e pela jurisprudência com valor apenas de confissão e não de testemunho. É que só podem servir como testemunhas aquelas pessoas equidistantes das partes e sem interesse na solução da demanda.
Mittermayer, em seu Tratado das Provas em Direito Criminal, páginas 295-296, dá as justificativas que embasam esse entendimento: “Tem-se visto criminosos que, desesperados por conhecerem que não podem escapar à pena, se esforçam em arrastar outros cidadãos para o abismo em que caem; outros denunciam cúmplices, aliás inocentes, só para afastar a suspeita dos que realmente tomaram parte no delito, ou para tornar o processo mais complicado ou mais difícil, ou porque esperam obter tratamento menos rigoroso, comprometendo pessoas colocadas em altas posições.”
E a boa jurisprudência também vai nesse sentido. O voto mais emblemático é do ilustre ex-ministro do STF, Sepúlveda Pertence, referindo-se à declaração do corréu: “(…) Não se trata somente de uma fonte de prova particularmente suspeitosa (…) mas de um ato que, provindo do acusado, não se pode, nem mesmo para certos efeitos, fingir que provenha de uma testemunha. O acusado (corréu), não apenas não jura, mas pode até mentir impunemente em sua defesa (…) suas declarações, quaisquer que sejam, não se podem assimilar ao testemunho, privadas como estão das garantias mais elementares desse meio de prova (…) Dos co-denunciados do mesmo delito, por conseguinte, um não pode testemunhar nem a favor nem contra o outro, já que suas declarações mantêm sempre o caráter de interrogatório, de tal modo que seria nula a sentença que tomasse tais declarações como testemunhos.”
Portanto, não há dúvida de que palavra de corréu, ainda que de vários corréus (podem estar conluiados), não deve ser admitida, seja contra ou a favor, como prova testemunhal. Isto é, a palavra de Delúbio pode incriminá-lo, como confissão que é, mas não pode, ao afirmar que Genoíno e Dirceu nada sabiam do mensalão, inocentá-los, pois ele é corréu, sua palavra é suspeita. Por outro lado, as palavras dos demais corréus, contrárias à de Delúbio, acusando Genoíno e Dirceu de terem conhecimento ou de orquestrarem o mensalão, também não podem incriminá-los, pois são tão suspeitas como a de Delúbio. Em outras palavras, as supostas e contraditórias alegações dos corréus teriam de ser sopesadas à vista de outros elementos probatórios, obviamente excluindo-se as presunções (que, como já vimos, não são admitidas como provas), e os indícios que admitirem, além da conduta ilícita, outras condutas lícitas, pois neste caso não estaria havendo uma indução criminosa taxativa.
Como pano de fundo de toda essa doutrina e jurisprudência efetivamente praticadas pelos profissionais do Direito e pelos tribunais, e não apenas no Brasil, mas também na maior parte do mundo civilizado ocidental, está sempre o princípio do in dubio pro reo. Este princípio não pode ser revogado pela mera opinião pessoal, pelo palpite deste ou daquele magistrado.
Convicção, em Direito Penal, é outra coisa, está vinculada à prova produzida nos autos, e não a presunções baseadas em testemunhos de fontes suspeitas e em indícios não taxativos, isto é, não excludentes de condutas regulares.
No próximo artigo, abordaremos a distinção entre opinião pessoal e convicção jurídica, bem como apreciaremos superficialmente o problema do notável saber jurídico.
ARTIGOS de ANTONIO SÉRGIO VALENTE
NOTA: Os textos assinados não refletem necessariamente a opinião do BLOG do AFR, sendo de única e exclusiva responsabilidade de cada autor.