Antônio Sérgio Valente
Se comparada às experiências paulistas apontadas no primeiro artigo, Talão da Fortuna e Turma do Paulistinha, a NF Paulista introduziu algumas inovações:
a) Indicação do CPF (Cadastro de Pessoa Física) do consumidor.
b) Restituição de parte do imposto embutido no preço da mercadoria, sem prejuízo do estímulo lotérico.
c) Envio obrigatório — por parte do comerciante, através de meio eletrônico — das operações de venda.
d) Possibilidade de acompanhamento, por parte do consumidor, da transmissão dos dados encaminhados pelo comerciante.
e) Possibilidade de redirecionamento, pelo consumidor, dos créditos por prêmios ou restituições, a entidades beneficentes.
As duas primeiras inovações apontadas merecem reparos, pois contêm distorções de natureza deontológica, às quais já nos referimos genericamente no artigo anterior e vamos esmiuçá-las a seguir.
As duas intermediárias (itens “c” e “d”) são muito interessantes, mas decorrem mais do aparelhamento da Secretaria da Fazenda do que propriamente da NF Paulista; poderiam ser implantadas só com maior transparência, sem prêmios ou restituições, quando muito com brindes por divergências informadas pelo consumidor e constatadas pelo fisco.
Já a última inovação (alínea “e”), introduzida no decorrer do programa, merece aplausos especiais, embora ainda careça de alguns ajustes, dos quais cuidaremos no último artigo. Mas detenhamo-nos ainda um momento na análise das distorções dos itens “a” e “b”.
Big Brother
O pré-requisito de inserir o CPF no documento fiscal causa muita polêmica. O argumento dos que se sentem incomodados já foi rebatido pelos defensores da NF Paulista com duas contraditas contestáveis. A primeira foi uma admissão pública da Lei de Gerson: CPF na NF representa dinheiro a mais no bolso, e quem não gosta de levar vantagem em tudo? Já foi replicada, a priori, no artigo anterior, no tópico Razões Deontológicas. A segunda, para dizer o mínimo, foi muito deselegante: quem pensa assim ou é sonegador ou marginal, tem dinheiro sem origem e por isso não quer ou não pode declarar o CPF. É desta que trataremos agora.
Quando George Orwell, em 1948, lançou o romance 1984, no qual criou a expressão Big Brother, ao imaginar um futuro quase sem privacidade, com vigilância total do indivíduo por parte do Estado, fez não apenas um exercício de futurologia, mas sobretudo uma severa crítica à opressão dos regimes totalitários, que agiam mediante o emprego de táticas que levavam à repressão e ao medo, pregavam o denuncismo contra adversários ideológicos, por parte de vizinhos, colegas de trabalho, amigos e até mesmo parentes, todos os cidadãos deviam pensar com a cabeça dominante do governo, e a implacável Polícia do Pensamento devia saber de tudo; o indivíduo era reduzido a marionete e serviçal do Estado, o controlador total.
O livro é uma obra-prima e a temática sobre a perda da privacidade não é assunto superado, muito pelo contrário. Informações econômicas, dados diversos, fotos, detalhes e cenas da vida privada vazam e são divulgados em vários ambientes virtuais, podendo ou não, com ou sem autorização, legal ou ilegalmente. Hackers violam bancos de dados oficiais, ou servidores inescrupulosos os comercializam. Não raramente surgem notícias de que informações reservadas são vendidas até por camelôs. Isso tudo aliado ao uso indevido pelos próprios agentes públicos, expõe o indivíduo de tal modo que pode afetá-lo em termos profissionais, em sua segurança pessoal, na relação familiar e até psicologicamente. Esses males são atualíssimos.
Não é de estranhar que a NF Paulista cause tanta suspeição, pois o indivíduo imagina, e não está equivocado, que aquelas informações vão alimentar um banco de dados que conterá os seus hábitos pessoais de consumo e freqüência (produtos, valores, datas, locais, restaurantes, etc). Até trajetos, devoções religiosas e relacionamentos não conjugais é possível levantar a partir desses dados. Ora, o assunto é muito sério. E ninguém sabe ao certo como e por quem essa preciosa fonte de informações será manipulada. Há até a possibilidade de uso em armações contra terceiros. É sem dúvida uma bela amostra grátis do Big Brother, digamos assim, o início do fim da privacidade.
A Ética da Restituição
A restituição do ICMS ao consumidor, introduzida pela NF Paulista, merece outros reparos, dois aqui vão, e o terceiro merece um bloco à parte.
Primeiro. Os consumidores que mais compram, que mais gastam, não há dúvida de que são os mais ricos. São estes os que mais indicam o CPF, concorrem a mais prêmios e auferem as maiores restituições. Ora, será ético devolver tributo (que poderia ser destinado à saúde, à educação, ao transporte, etc.) aos cidadãos mais ricos, aos que mais têm condições de contribuir para o bem comum?
Segundo. A maior parte das transações no varejo, em volume e valor, costuma ser feita nos supermercados e em magazines de grandes redes. Ora, não se teve notícia de estabelecimento desse tipo que não emitisse o Cupom Fiscal quando da passagem da mercadoria pelo caixa; é até uma questão de controle interno. Isto antes e depois da NF Paulista. Essas transações já eram habitualmente objeto de emissão. O consumidor sequer precisava pedir. Então por que estimular o que não precisa de estímulo? É ético restituir tributo em face de um estímulo dispensável? É ético atribuir prêmios em decorrência de operações isentas e não tributáveis? É ético jogar recurso público — imposto, prêmio — na lata do lixo?
A Ética da Informação Inexata
O site da NF Paulista informa que 30% do ICMS efetivamente recolhido pelo estabelecimento será devolvido ao cidadão que fizer incluir no documento fiscal de compra o seu CPF. Sabe-se que o ICMS é tributo embutido no preço e que boa parte das operações estão sujeitas à Substituição Tributária (ST). Mas o imposto cobrado por uma grande indústria, por exemplo, de um supermercado, através de fatura paga na rede bancária, não é considerado pela Secretaria da Fazenda como imposto efetivamente recolhido pelo estabelecimento. Embora o tributo embutido na fatura seja pago ao fornecedor pelo varejista, que por sua vez o cobra (recebe, recolhe, arrecada, todas estas palavras são sinônimas) do consumidor. Ainda que o tributo seja objeto de uma guia de recolhimento em nome do fabricante, não se pode ignorar que ele foi, pelo varejista, cobrado e recolhido do bolso do consumidor.
A leitura de qualquer bom dicionário informa que pagar e recolher são dois lados da mesma moeda, embora não sejam sinônimos: alguém paga (entrega dinheiro) e alguém recolhe (recebe dinheiro). O problema está na sutil distinção, não abrigada em dicionários ou gramáticas, que o jargão fiscal vem fazendo entre os verbos pagar e recolher, entendendo que o supermercado paga, mas quem recolhe ao Estado é a indústria ou o atacadista. Há inclusive um erro gramatical nessa construção, pois a rigor ninguém recolhe nada ao Estado, este é quem recolhe o tributo dos contribuintes, vale dizer, o tributo é recolhido, recebido pelo Estado.
O encadeamento literal, se o produto não estiver sujeito à Substituição Tributária, é o seguinte: o consumidor paga o tributo sobre o valor total da mercadoria ao varejista; este recolhe (recebe) o tributo do consumidor, sendo que uma parte, sobre o valor acrescido na etapa final, o varejista paga diretamente ao Estado, que o recolhe (recebe), e outra parte, sobre as etapas anteriores de circulação, o varejista paga ao atacadista ou à indústria, que, de um lado o recebe, e de outro, o paga ao Estado, que sempre está na ponta final da linha, recolhendo (recebendo) o tributo.
Se o produto estiver sujeito à ST, o pagamento total do imposto recolhido (recebido) pelo varejista diretamente do bolso do consumidor, é feito pela indústria ou pelo atacadista, ao Estado, que o recolhe, recebe, arrecada.
Em suma, o varejista é quem efetivamente recolhe (recebe) o tributo das mãos do consumidor, que afinal de contas é quem de fato paga o tributo. Ora, se a promessa é de que se devolverá 30% do imposto efetivamente recolhido pelo estabelecimento emitente do documento fiscal, a conta deveria ser feita a partir do ICMS incluído no valor efetivamente pago ao varejista e efetivamente recolhido (recebido) por este. Mas não é isso que vem sendo praticado.
A interpretação oficial, que contraria dicionários e gramáticas, pode até ser acolhida pelo distorcido jargão fiscal, mas quando o órgão se dirige ao público leigo, ao cidadão comum, sobretudo quando pretende estimular a cidadania, deve empregar a linguagem mais correta, precisa e clara possível, sem margem a pegadinhas, ambiguidades ou propaganda enganosa. Pois se ao fazer as contas o cidadão sentir-se ludibriado, o tiro sai pela culatra: desestimula-se a cidadania, eis que esta incorpora, dentre outros, os conceitos de lealdade, transparência e exatidão.
Há, portanto, vários problemas na NF Paulista e uma virtude a ser lapidada. No próximo artigo, faremos um diagnóstico da eficácia prática do programa. E no último, apresentaremos algumas ideias para corrigir as distorções apontadas e aperfeiçoar a virtude enaltecida.
ARTIGOS de ANTONIO SÉRGIO VALENTE
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