João Francisco Neto
Sempre que ouvimos falar em escravidão, a ideia que logo nos vem à mente é a compra e venda de pessoas, para depois serem enviadas a outro continente, onde então serão exploradas por seus novos “donos”. Legalmente, essa forma de escravidão está extinta desde o século 19, o que não quer dizer que não existam mais pessoas reduzidas a essa condição. Atualmente, a chamada “escravidão moderna” configura-se pelo trabalho forçado, em que as pessoas são obrigadas a exercer uma atividade contra a sua vontade, sob ameaça, ou mediante violência física ou psicológica, além de outras formas de intimidação. As situações são as mais variadas possíveis: são pessoas exploradas por empregadores inescrupulosos, que se aproveitam da situação de extrema pobreza; são imigrantes clandestinos que se veem forçados a aceitar “empregos” que são verdadeiras arapucas; são mulheres e meninas, vítimas de exploração sexual, ou que são obrigadas a um casamento para ser exploradas no serviço doméstico; são trabalhadores que se veem na contingência de prestar serviços para pagar dívidas que nunca serão saldadas; são crianças “recrutadas” por grupos políticos rebeldes ou paramilitares, para trabalhar como vigilantes (“olheiros”), mensageiros, etc.; são outras crianças, raptadas para alimentar o comércio da prostituição e da pornografia infantil – segundo o Unicef, existiriam cerca de 2 milhões de crianças submetidas a essas situações degradantes.
Isso tudo, para não falar de casos como os de trabalhadores confinados em áreas rurais geograficamente isoladas, ou em embarcações, onde ficam à mercê de exploradores. Nesse sentido, não é necessário ir muito longe: basta ver o que acontece em plena capital de São Paulo, com os imigrantes bolivianos que trabalham na indústria de confecção de roupas, sob condições de flagrante exploração, para dizer o mínimo. Com frequência, a imprensa traz relatos sobre grandes empresas multinacionais – algumas do ramo de refrigerantes, tênis e roupas esportivas – que lucram com negócios que se aproveitam do “baixo custo” do trabalho forçado, na maior parte das vezes, realizado em países asiáticos, embora essa prática exista até na União Europeia. De acordo com dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), há quase 21 milhões de pessoas no mundo submetidas a uma das formas da moderna escravidão. Ressalte-se que o Brasil não está isento dessa prática, porém várias organizações internacionais têm reconhecido os esforços das autoridades brasileiras para o combate ao trabalho escravo, como a publicação da chamada “Lista Suja” (cadastro de empregadores condenados por sujeitar pessoas à condição análoga de trabalho escravo).
Todavia, não vamos aqui pensar que apenas as pessoas acima estão sujeitas às modernas formas de escravidão; sob muitos aspectos, até no serviço público ainda vigoram resquícios da servidão. Por exemplo, há chefes que, do alto dos cargos em que se encastelam, passam a agir mais como feitores do que propriamente como gestores. Sua principal “técnica” de administração é a imposição do medo e da intimidação nos quadros sob seu comando. A partir dessa posição, o “administrador-feitor” atua como se fosse o dono daquele feudo (a “sua” unidade), o que, em grande parte, resulta, no mínimo, na prática do assédio moral, nas suas mais variadas formas. Infelizmente, no âmbito do funcionalismo público, situações dessa natureza são muito mais comuns do que se poderia imaginar. Por essas poucas linhas, vemos que, mesmo sem senzalas e sem grilhões, os “escravos modernos” estão aí, por toda parte. Para essas pessoas, igualdade, democracia e república são apenas palavras de conceitos indeterminados e vazios.
* Agente Fiscal de Rendas, mestre e doutor em Direito Financeiro (Faculdade de Direito da USP)
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