João Francisco Neto
Muitos leitores, movidos pela natural curiosidade humana, ficarão interessados em saber o que (ou quem) seriam esses tais “denunciantes invejosos”. Na verdade, não se trata de nenhuma figura conhecida ou personalidade de destaque; é apenas o título de um capítulo de um clássico livro de autoria do filósofo americano Lon L. Fuller (1902-1978), que foi professor de Direito em Harvard (EUA), livro esse que no Brasil foi traduzido por Dimitri Dimoulis como “O Caso dos Denunciantes Invejosos”.
O texto traz uma provocação aos leitores, uma vez que, numa mesma história, mistura conceitos do Direito, da Moral e da Justiça, que, como se sabe, nem sempre andam juntos. Em resumo, o enredo do livro é o seguinte: um pequeno e fictício País, que por muito tempo viveu sob um regime político democrático e pacífico, de uma hora para outra, afunda numa grave crise política e econômica, e vê-se envolvido em sérios conflitos provocados pelos diversos grupos de poder. Depois de muita luta, numa tentativa de superar a crise, sobe ao poder o chefe de um partido político conhecido como os “Camisas-Púrpuras”.
Aqui, um breve comentário. Essa história de grupos “encamisados” vem de longe: no nazismo, eram os “camisas-pardas”, que formavam as SA, uma violenta tropa de choque; no fascismo italiano, eram os “camisas-pretas”, uma tropa miliciana; e no Brasil, tivemos os “camisas-verdes”, os fascistas do integralismo, que, nos anos 1930, também conhecidos como os “galinhas-verdes”.
Mas, voltemos aos “Camisas-Púrpuras”. No poder, esse grupo político instalaria uma feroz ditadura, que, como sempre, não respeitava a Constituição, as leis, e muito menos o povo. Em lugar das antigas leis, passaram a criar uma legislação casuística e de interesse próprio, cuja finalidade era condenar ou absolver certas pessoas, em determinados casos. Por aí já se vê que muita injustiça foi cometida, como, aliás, é do feitio de todos os regimes ditatoriais. Nesse clima de medo, terror e opressão política, começaram a surgir os chamados “denunciantes invejosos” – essa expressão é uma tautologia, pois todo denunciante é sempre invejoso. Eram pessoas que, pressionadas pelos “Camisas-Púrpuras”, e por inveja e interesse pessoal, denunciavam outras pessoas, ainda que soubessem que os fatos denunciados nem sempre eram verdadeiros.
As denúncias, mesmo falsas, levavam à execução dos denunciados.
Os dirigentes do regime incentivavam tudo isso, pois, com as execuções, simulava-se uma ideia de rigor e força, e eliminavam-se os indivíduos “indesejáveis”. Os julgamentos eram sumários, e, logicamente, passavam bem longe daquilo que hoje conhecemos por “devido processo legal”.
Depois de algum um tempo, o regime democrático foi restabelecido e um novo Governo subiu ao poder, retomando-se o respeito às leis e à Constituição. Em seguida, instalou-se uma discussão: deveriam aqueles “denunciantes invejosos” serem punidos pelos crimes que praticaram durante o regime dos “Camisas-Púrpuras”? Havia propostas de todo tipo: uns consideravam que não, pois, afinal, aquelas pessoas apenas haviam cumprido as normas e os dispositivos vigentes à época (a lei, sendo ela justa ou injusta, é a lei); outros entendiam que, sim, os denunciantes invejosos haveriam de sofrer uma severa punição, uma vez que seus atos eram contrários do direito natural e à liberdade.
Na obra original – “The Morality of Law” -, o autor, Lon L. Fuller, apresenta cinco soluções diferentes para a pergunta “devem os denunciantes invejosos ser punidos?”. Na tradução para o português, o professor Dimitri Dimoulis acrescentou mais outras cinco opiniões, abrindo, assim, um grande leque de possibilidades, que envolvem conceitos do Direito, da Moral, da Ética, da Política, e da Justiça. Esse tema ainda não está totalmente pacificado, e, até hoje, existe doutrina e opinião para justificar qualquer uma das alternativas.
Relembre-se que, após o final da 2ª Guerra Mundial, quando da instalação do Tribunal de Nuremberg (1945-1946), os principais criminosos nazistas alegaram que apenas cumpriam leis vigentes em seu país, na época, e que, por isso, não poderiam, agora, serem condenados, por Estados estrangeiros. Criou-se um enorme mal-estar entre os juízes, que não estavam preparados para se confrontar com esse tipo de argumentação. No final, acataram parcialmente esse argumento para absolver as autoridades “menores”, mas acabaram condenando os altos dirigentes do nazismo, dentre os quais, 12 foram condenados à morte por enforcamento, e 3 à prisão perpétua.
Todavia, esse dilema ainda não foi totalmente superado, e o que não falta são “denunciantes invejosos”, à solta por aí, em todas as instituições – públicas e privadas -, agindo com muito “rigor”, e supostamente “em nome da lei”, para bajular os poderosos de plantão. Esses indivíduos, que mudam a “cor da camisa” com muita facilidade, representam o que há de pior no caráter humano. Infelizmente, no ambiente de trabalho e nas relações sociais, somos obrigados a conviver com esses tipos e, ainda, fazer de conta que não sabemos quem de fato eles são.
* Agente Fiscal de Rendas, mestre e doutor em Direito Financeiro (Faculdade de Direito da USP)
ARTIGOS de JOÃO FRANCISCO NETO
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