Antônio Sérgio Valente
Nos dois artigos anteriores demonstramos fartamente que a NF Paulista não consegue formar a cidadania fiscal, pois está maculada desde o berço pela Lei de Gerson, e, embora já caminhe para o seu quinto ano de vigência, há um bom tempo vem patinando em torno de 1/3 das operações. Ou seja, de cada três documentos fiscais emitidos pelo varejo, em apenas um consta o CPF/CNPJ do adquirente.
Demonstramos também que o programa não consegue mitigar a sonegação do segmento ao qual se destina, o varejista, eis que este vem apresentando crescimento nominal próximo à inflação, sequer tem incorporado a expansão do PIB, ao contrário dos demais segmentos.
Constatamos também que a NF Paulista não gera créditos nem prêmios para os excluídos, eis que estes pouco adquirem e na maioria das vezes nem CPF possuem.
Em outras palavras, a NF Paulista serve primordialmente para restituir tributos e conceder prêmios às classes média e alta, que são as que mais gastam e compram. Para os menos afortunados sobram migalhas. De modo que, socialmente falando, o programa não serve para nada. Neste último ponto, alguém constatou que estamos exagerando, mas já veremos que não muito.
É que, a bem da verdade, a NF Paulista beneficia também as entidades beneficentes, que atendem aos menos favorecidos, e alguém informou que o articulista está sendo parcial ao não mencionar este fato. O crítico teria toda razão se não houvéssemos aludido a este aspecto nos artigos publicados no final do ano passado, na série sobre a NF Paulista. Chegamos inclusive a sugerir que essa virtude fosse lapidada, que o programa passasse a concentrar-se exclusivamente nela, e que inclusive mudasse de nome para Tributo à Solidariedade. Mencionamos que com 1/3 dos recursos (redução de 30% para 10%), e indicação exclusiva dos CNPJs das entidades sociais, far-se-ia a um só tempo a correção deontólogica do programa e lapidar-se-ia a sua única virtude, decuplicando a destinação às entidades filantrópicas. Está lá escrito, com todas as letras, basta ler as partes III e IV dos artigos publicados no Blog do AFR, sob o título Nota Fiscal Paulista.
O problema é que até dezembro/2011 foram distribuídos às entidades sociais, pelo programa atual, créditos inferiores a R$ 100 milhões, do total de mais de R$ 5 bilhões gerados. Isto significa menos de 2% do total. Ora, isto é muito pouco, é quase irrisório para o tamanho de São Paulo. O fato é que o grosso do que está sendo gerado e restituído destina-se às pessoas que mais compram. E quem são elas? O site da SEFAZ-SP não informa, mas um breve exercício dedutivo leva-nos à resposta. Seriam as mais pobres? As excluídas? As que habitam as marquises da vida? As da cracolândia? É óbvio que não. Quem mais compra neste Estado, quem mais dispõe de recursos eletrônicos para acompanhar os lançamentos, são as classes média e alta, isto é indiscutível.
E não me venham com o argumento de que os ricos doam os seus documentos fiscais às entidades. Doam nada. Se doassem de verdade, a participação destas no total não seria de apenas 2%…!
Em suma, a NF Paulista não atinge o objetivo a que se destina, não resulta em mais cidadania fiscal, não impede a sonegação, e não é um programa de redistribuição de renda, pelo contrário.
A NF Paulista e a Folha de Pagamentos
Para ter-se uma ideia comparativa de quanto representa o custo desse programa, o montante da Folha de Pagamentos da Secretaria da Fazenda de São Paulo inteira, incluindo não apenas a fiscalização, mas também todos os demais servidores da Sefaz-SP, inclusive os inativos, não chega a isso.
Os dados estatísticos divulgados pelo governo, no que tange à Folha de Pagamentos, são bem precários. Têm a transparência do vidro jateado. Estão disponíveis apenas valores a partir de 2010, e ainda assim com mudanças nos critérios e sem notas explicativas, com problemas até na linkagem das planilhas aos respectivos meses. Em vários períodos constam valores idênticos até nos centavos, o que é praticamente impossível de ocorrer. Mas expurgando os prováveis equívocos, chega-se a alguns resultados inferíveis. O Quadro V desta série, embora sujeito a correção posterior (quando o governo publicar os números corretos, transparentes), dá uma ideia da proporção entre gastos com a NF Paulista, de um lado, e gastos com os servidores que lidam com a arrecadação de tributos, de outro, que é o parâmetro funcional mais próximo.
Em 2010, essas rubricas mais ou menos empataram, e em 2011 o custo da NF Paulista chega a superar o da Folha de Pagamentos da SEFAZ-SP. E note-se que nos números desta estão incluídos os inativos, que a rigor deveriam ser lançados à parte, pois os servidores públicos de São Paulo — ativos e inativos — contribuem mensalmente com 11% dos seus vencimentos brutos para cobrir pensões e aposentadorias, isto sem contar a parcela patronal, que nem sempre foi provisionada como deveria.
Observe-se também que são os servidores da Secretaria da Fazenda, mormente os Agentes Fiscais de Rendas, que enfrentam o sonegador no dia-a-dia, cuidam da administração tributária e das 134 portas de sonegação existentes, incluindo aquela entreaberta que a NF Paulista tenta fechar e não consegue — a da falta de emissão.
São esses mesmos servidores — todos altamente qualificados, que prestam concursos dificílimos — os incumbidos de detectar fraudes tributárias engenhosas e milionárias, autuar os infratores, representar contra eles criminalmente, correndo inclusive risco de vida. Tais servidores, mesmo depois da aposentadoria, são intimados para depor em inquéritos instaurados no DECON e em processos nas Varas Criminais relativos a infrações que lavraram. Trabalham debaixo de permanente tensão, com pressões de toda sorte.
São esses mesmos servidores, com esse nível de qualificação e responsabilidade, que valem, segundo o critério de valoração dos que comandam São Paulo, menos do que o programa da NF Paulista…! Pasmem, mas é isto que vem ocorrendo.
Há uma desproporção muito grande nas escolhas do governo: para tentar fechar meia porta de sonegação (pois a NF Paulista sequer fecha inteiramente o vão pelo qual passa), o governo de São Paulo investe mais do que para fechar todas as outras 133,5 portas.
É absurda a desproporção. É absurdo o critério.
E o pior: é inútil o gasto. Não forma a cidadania, eis que se baseia em premissa maculada pela Lei de Gerson, e não consegue elevar a arrecadação do setor varejista, que é a sua finalidade precípua. Em outras palavras, é recurso público que simplesmente se esvai pelo ralo. Ou melhor, se esvai para o aliciamento demagógico das camadas sociais que menos precisam do benefício.
Não resta a mínima dúvida de que é um absurdo o que o governo anterior implantou e o atual vem mantendo, com perseverança, com a perseverança do burrico de nora, como costuma refletir o governador atual. Mas perseverar no erro, excelência e demais senhores da alta cúpula fazendária, criadores e defensores da NF Paulista, permitam-nos a franqueza, não é virtude — é teimosia. Não é o burrico de nora (o que circula em torno do poço para puxar água o dia todo) como metáfora da persistência. Pelo contrário, é o burrico literal, com viseiras e orelhas bem grandes.
O pior é que pelo silêncio do governo ante as sugestões apresentadas, ante a proposta do Tributo à Solidariedade, ante a sugestão de estímulos aos agentes que atuam no combate efetivo à sonegação fiscal, depreende-se que o governo está dando de ombros para as entidades filantrópicas, para a sociedade e para o fisco. Tanto que até este momento não acenou com a retificação da sua postura. Pelo visto, optará por perseverar no equívoco, essa teimosia que de santa não tem nada.
Oxalá as coisas mudem e possamos no futuro escrever um artigo elogiando o governo por ter corrigido as distorções. Até que isso ocorra, vamos nós também seguir pelo caminho que orienta a reflexão do governador sobre a perseverança, mas sulcando outra vereda, a da verdade, e não a do equívoco e da demagogia.
A propósito, encerramos esta trinca de reflexões com a mesma epígrafe inicial que nos tem motivado a investir parte do nosso escasso tempo na lavratura destes artigos. E o fazemos por dois motivos. Primeiro, porque um amigo — meio da onça, vá lá — confidenciou-nos que a melhor parte do artigo inaugural desta série foi a epígrafe… Segundo, porque dizem que o governador aprecia muito o autor da meditação epigrafada. Voltemos, pois, a ela, para fechar a porta desta série com a mesma chave que a abriu:
Encontrarás pessoas a quem, pela sua obtusa teimosia, dificilmente poderás persuadir… Mas, fora esses casos, vale a pena esclarecer as discordâncias, e esclarecê-las com toda a paciência que se faça necessária. (S. Josemaria Escrivá, em Sulco, capítulo Veracidade, item 574. A alusão ao burrico de nora, citada no texto, foi haurida no item 998, capítulo Perseverança, do livro Caminho, do mesmo autor.)
Quadro V — Análise Comparativa da FOLHA DE PAGAMENTOS DA SEFAZ-SP | ||||||||
com o CUSTO DIRETO DA NF – PAULISTA | ||||||||
Dados Estatísticos da FOLHA DE PAGAMENTOS da Secretaria da Fazenda (1) | Custo Direto NFP (2) | |||||||
Ativos | Inativos | Outros | Total | Média Mensal | Créditos+Prêmios | Média Mensal | ||
jan/10 | 77.832.709 | 52.464.016 | 4.061.402 | 134.358.127 | 125.597.513 | |||
fev/10 | 123.969.854 | 85.097.498 | 4.275.267 | 213.342.619 | 130.513.161 | |||
mar/10 | 123.969.854 | 85.097.498 | 4.275.267 | 213.342.619 | 168.319.203 | |||
abr/10 | 123.969.854 | 85.097.498 | 4.275.267 | 213.342.619 | 121.804.170 | |||
mai/10 | 123.969.854 | 85.097.498 | 4.275.267 | 213.342.619 | 99.054.664 | |||
jun/10 | 77.248.096 | 55.529.292 | 1.428.808 | 134.206.196 | 117.426.215 | |||
jul/10 | 123.969.854 | 85.097.498 | 4.275.267 | 213.342.619 | 121.537.467 | |||
ago/10 | 123.969.854 | 85.097.498 | 4.275.267 | 213.342.619 | 127.565.401 | |||
set/10 | 123.969.854 | 85.097.498 | 4.275.267 | 213.342.619 | 138.866.644 | |||
out/10 | 233.609.500 | 52.595.497 | 3.942.228 | 290.147.225 | 140.304.040 | |||
nov/10 | 233.609.500 | 52.595.497 | 3.942.228 | 290.147.225 | 197.325.484 | |||
dez/10 | 233.609.500 | 52.595.497 | 3.942.228 | 290.147.225 | 125.545.485 | |||
Ano 2010 | 268.564.323 | 134.282.161 | 1.613.859.447 | 134.488.287 | ||||
jan/11 | 78.938.014 | 66.322.908 | 4.862.312 | 150.123.234 | 125.372.639 | |||
fev/11 | 98.562.609 | 64.226.089 | 4.919.414 | 167.708.112 | 132.511.756 | |||
mar/11 | 74.573.304 | 69.894.715 | 4.926.497 | 149.394.516 | 211.486.505 | |||
abr/11 | 64.894.673 | 63.180.114 | 5.332.427 | 133.407.214 | 145.536.837 | |||
mai/11 | 97.536.477 | 2.210.145 | 5.267.773 | 105.014.396 | 122.720.083 | |||
jun/11 | 151.128.470 | – | 5.202.900 | 156.331.370 | 132.799.003 | |||
jul/11 | 87.356.034 | – | 5.277.539 | 92.633.573 | 137.205.509 | |||
ago/11 | 91.264.012 | 4.554.482 | 95.818.494 | 161.489.219 | ||||
set/11 | 152.487.071 | 5.472.044 | 157.959.115 | 168.740.282 | ||||
out/11 | 89.096.776 | 5.197.815 | 94.294.590 | 160.433.937 | ||||
nov/11 | 129.403.982 | 4.791.926 | 134.195.908 | 150.790.633 | ||||
dez/11 | 154.960.890 | |||||||
Ano 2011 | 1.115.241.422 | 265.833.972 | 55.805.129 | 1.436.880.523 | 130.625.502 | 1.804.047.293 | 150.337.274 |
Observações:
1) Valores obtidos no site da Secretaria da Fazenda (www.fazenda.sp.gov.br) > Folha de Pagamentos > Dados Estatísticos > Mês > Despesa com Pessoal > Total. A rubrica “Outros” corresponde a Auxílios e Comp. de Aposentadorias e Pensões. Valores correspondem às DESPESAS COM PESSOAL de TODOS os servidores da Secretaria da Fazenda, e não apenas dos Agentes Fiscais de Rendas. Em face da evidente imprecisão nos dados dos meses de fevereiro a maio/2010 e de julho a dezembro/2010, para efeito de cálculo da média mensal foram tomados apenas como base apenas os valores dos meses de janeiro e junho/2010, e quanto a 2011 foram levados em conta os valores de janeiro a novembro/2011. Tendo em vista a mudança no critério de indicação dos valores de ATIVOS e de INATIVOS a partir de maio/2011, os cálculos das médias foram feitos pelos valores totais.
2) Dados obtidos no site www.nfp.fazenda.sp.gov.br > Detalhes do Placar > Valores Distribuídos > colunas “Créditos Gerados” e “Prêmios e Sorteios”. Incluem valores já resgatados e a resgatar.
ARTIGOS de ANTONIO SÉRGIO VALENTE
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