Gustavo Theodoro
Em decisão proferida em abril de 2010 (REsp 1.148.444 MG), o STJ firmou jurisprudência no sentido de reconhecer que, em caso de boa-fé comprovada, é assegurado ao destinatário o crédito decorrente da escrituração de documento inidôneo. É de se notar que a referida decisão, ao mesmo tempo em que afastou a aplicação da multa punitiva, autorizou a manutenção do crédito destacado no documento inidôneo.
Em maio de 2012, o Tribunal de Impostos e Taxas – TIT, por meio de sua Câmara Superior, enfrentou a questão (Processo DRTC III-296266/2010) tendo como parâmetro a decisão proferida pelo STJ. Ao final, foi cancelado o AIIM de que trata o processo utilizando-se, para tanto, dos mesmos argumentos adotados pelo STJ.
É digno de nota o voto divergente proferido pelo Dr. Argos Campos Ribeiro Simões, vencido na sessão que tratou do tema. Como bem ressaltou o ínclito Juiz, o afastamento da aplicação da responsabilidade objetiva, prevista no artigo 136 do CTN, poderia afastar apenas a imposição da multa de caráter sancionatório, mas jamais poderia permitir a manutenção do crédito destacado em documento inidôneo.
O artigo 136 do CTN trata, apenas, de responsabilidade por infrações. No entanto, ao julgar a matéria, o STJ, ao constatar a inexistência de dolo ou culpa, afastou não apenas a aplicação da multa, mas também permitiu ao contribuinte manter o crédito indevidamente tomado.
O Dr. Argos, no excelente voto proferido, seguiu o posicionamento do STJ, visto que se trata de jurisprudência firmada. Mas propôs a manutenção da cobrança do crédito indevido tomado, tendo em vista o princípio da não cumulatividade que, neste caso, veda o aproveitamento do crédito.
Está reproduzido abaixo pequeno extrato do voto divergente vencido, que contém a base para a argumentação a favor da manutenção do AIIM no que concerne ao crédito destacado no documento fiscal inidôneo:
A desclassificação jurídica significa que não há mais fato (como descrição) a sofrer a incidência normativa (incidência como coincidência entre a hipótese legal e o linguisticamente descrito como fato).
Sem fato da saída, não há fato jurídico, como fato gerador. Sem fato gerador, não há incidência normativa. Sem incidência de imposto sobre aquele que deveria remeter uma mercadoria, dá-se o efeito constitucional: não há direito de crédito a ser tomado pelo adquirente; salvo disposição legal em sentido contrário.
Por outro giro: sem fato jurídico, sem incidência, não há imposto devido. Sem imposto devido no remetente, não há montante cobrado em anterior operação, sob a ótica do adquirente. Sem montante cobrado, não há possibilidade de crédito no adquirente; salvo disposição legal em sentido contrário.”
Pela construção acima, ainda que o contribuinte destinatário tenha êxito em demonstrar sua boa-fé, não lhe seria admitida a manutenção do crédito tomado. Sob alguns aspectos, é de se comparar a nota fiscal inidônea à moeda-papel falsa. Se um cidadão qualquer receber dinheiro falso, o Banco Central o orientará a se dirigir a uma agência bancária de varejo para notificar o fato e entregar as notas falsificadas. Não lhe será ressarcido o valor consignado na nota, já que o referido papel-moeda é falso, não lhe sendo atribuído nenhum valor, ainda que a boa-fé seja demonstrada.
Antes de prosseguir, façamos breve reflexão sobre o instituto da responsabilidade objetiva à luz dos conceitos que norteiam as mais modernas técnicas de tributação, em especial no que concerne à necessidade de um ambiente de confiança entre fisco – contribuintes – sociedade.
A responsabilidade objetiva foi muito útil ao evitar que o sonegador se refugiasse na alegação de desconhecimento das irregularidades cometidas. No entanto, a recende discussão pacificada pelo STJ deixa claro que penalidades não podem ser impostas àqueles que demonstram não ter agido com dolo e nem mesmo com culpa. O STJ incumbiu ao acusado de infrações fiscais a comprovação de sua boa-fé. Comprovada a boa-fé, afastada estaria a aplicação da multa punitiva.
Apesar de esta decisão implicar alguma mudança no modo como o Fisco tem atuado nos últimos anos, o crédito destacado em documento inidôneo não deve ser abandonado, sob pena de se arriscar o surgimento de uma indústria de papéis falsos, ainda que eletrônicos. Os gregos cunharam uma expressão akrasia que significa agir contra os próprios interesses. O termo é adequado para descrever a situação em que o Fisco passa simplesmente a reconhecer o crédito destacado em documento inidôneo sob a alegação de que foi tomado de boa-fé.
No período de mais de uma década que atuei na Fiscalização Direta de Tributos, sempre causou certo desconforto a lavratura de AIIM contra contribuinte que desconhecia a situação de inidoneidade dos documentos. Em diversos casos, os contribuinte demonstravam ter seguido todos os procedimentos indicados na legislação e disponíveis aos contribuintes para aferir a idoneidade dos documentos. Nos casos desses contribuintes aparentemente idôneos, notava-se forte sentimento de injustiça, já que não só o crédito era glosado como o contribuinte tinha contra si lançada multa punitiva.
O que a experiência internacional tem demonstrado é que o Fisco precisa exalar confiança de modo a garantir o pagamento espontâneo do imposto ao mesmo tempo em que combate com afinco a sonegação e pune com rigor os infratores.
A disseminação da imagem positiva do Fisco envolve, evidentemente, muitos aspectos, como o combate à corrupção, a transparência de suas ações, a simplicidade de suas normas, a impessoalidade de seus atos, dentre outros. Neste sentido, não apenar aquele que comprova sua boa-fé é medida que aumenta a confiança na relação Fisco x Contribuinte.
Feita esta consideração, ainda assim parece-me absurda a possibilidade de o Fisco reconhecer a legitimidade de crédito destacado em documento inidôneo. A questão que se coloca então é a seguinte: há possibilidade de se acolher a decisão do STJ e, ao mesmo tempo, impedir que o crédito destacado em documento inidôneo seja aproveitado pelo destinatário sem afetar a relação de confiança Fisco x Contribuinte?
Penso que sim. O procedimento adotado até então pelo Fisco impunha penalidade ao contribuinte que tomara crédito destacado em documento inidôneo independentemente de eventual demonstração demonstração de boa-fé. A adoção irrefletida da decisão do STJ poderia levar à não lavratura de AIIM em caso de demonstração de boa-fé. Medida mais justa, que impede enriquecimento ilícito do contribuinte em prejuízo da sociedade ao mesmo tempo em que veda apenar contribuinte que demonstrou boa-fé, seria dar a possibilidade, por meio de notificação, de o contribuinte proceder ao estorno do crédito sem imposição de multa punitiva.
Caso o contribuinte opte por não estornar o crédito no prazo cominado em notificação específica, estaria o Fisco autorizado a lavrar o AIIM, sem possibilidade de alegação de boa-fé, visto que foi oferecida ao contribuinte a oportunidade de regularização de sua situação sem imposição de multa. A discussão no STJ se afastaria dos temas envolvendo dolo, culpa ou responsabilidade objetiva, restando decidir a questão envolvendo a possibilidade de documento inidôneo transferir imposto, já que é certo que este debate foi obscurecido pelo tema da boa-fé.
Com isso, além dos inúmeros benefícios decorrentes da medida, como aumento da confiança na relação Fisco x Contribuinte e como a vedação a que documentos inidôneos transmitam crédito, teríamos ainda o ganho adicional de introduzir em nosso ordenamento jurídico limites ao princípio da responsabilidade objetiva, já que é certo que ela jamais poderia ser aplicada sem considerar os conceitos de dolo ou culpa.
Trata-se de solução simples, mas que produz significativos impactos na forma de agir do Fisco e na maneira como o STJ tem decidido os processos envolvendo crédito indevido de documento inidôneo.
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