Operação Espírito de Porco

Carlos H. Peixoto

Existem dois tipos de Operação Especial: as que são um sucesso e as que, mesmo sendo um fracasso, são um sucesso também.

Prender corrupto no Brasil é como enxugar gelo — raramente o meliante fica trancafiado por mais de setenta e duas horas. Nos últimos 40 anos, o Supremo condenou por crime de colarinho branco apenas um político. De tudo que é desviado pela via da corrupção, apenas 15% retorna aos Cofres Públicos. Bem conversado, os peixes grandes da iniciativa pública e da privada — os mandantes —, além de não ficarem em cana, terão o prazer de usufruir da grana em outros paraísos. É só esperar a poeira baixar, no máximo até o próximo escândalo.

De 2003 a 2010 a Polícia Federal realizou 1062 operações especiais. Para que a PF consiga levar adiante sua missão, muitos são os percalços enfrentados pelos Delegados e Agentes, sejam de ordem interna, política, judicial e/ou administrativa. Por toda parte há inimigos e espiões.

Parafraseando All Ries e Jack Trout: a batalha crucial do marketing de guerra policial é travada na mente do cidadão. Se a primeira vítima da guerra é a verdade, então o maior aliado do General é a propaganda. A Polícia Federal conhece a cartilha midiática. Ao mexer com tubarões de costas largas, o sucesso da missão depende principalmente de ter a opinião pública a seu favor (da PF). Portanto, o nome da operação é o primeiro passo para que o trabalho da Polícia tenha repercussão no mundo do crime.

Como vivemos na sociedade do espetáculo, se o indigitado não ficar preso e ainda tiver o privilégio de não pagar um centavo por seu crime, ao menos o elemento terá sido exposto ao julgamento popular. De forma geral, a PF vem fazendo um belo trabalho. Noutros tempos, delegados e agentes federais eram convocados pelo Presidente da República para confiscar boi gordo no pasto — foram tempos de inflação alta, vacas magras, quando a Polícia Federal, sucateada, operava à sombra do Engavetador Geral da República. Os ventos mudaram, e das operações fiscais de que tivemos notícia a melhor de todas foi a Operação Espírito de Porco.

Antecedentes da Operação. A sonegação fiscal compromete o desenvolvimento da nação, induzindo práticas desleais nos negócios privados e acobertando a corrupção dos agentes públicos. Sabendo disso, o Subsecretário de Fazenda Agropecuária investiu pesado em tecnologia. Afirmou ele, o Sub, em entrevista ao Fantástico Mundo dos Bichos: “A nota fiscal eletrônica vai monitorar o transporte das mercadorias, desde a origem até o destino.”

Já que é impossível para o Fisco estar em todos os lugares ao mesmo tempo, e considerando que os documentos emitidos pelos contribuintes são meras representações de fatos já acontecidos, estabeleceu-se o primeiro axioma para a construção dos Sistemas de Informações:

O que não ingressou no computador através de dados nunca existiu no mundo dos fatos”. Em consequência, “se o agente não entrou com os dados no Sistema é por que ele, o fiscal, não trabalhou”

Para garantir a mobilidade da Fiscalização e fazer com que os dados não informados pelos clientes externos sejam introduzidos no Sistema, foram criadas duas novas divisões com oitenta cargos de gerência: DF-TETA e NOIA.

A Divisão de Fiscalização de Trânsito Eletrônico Tobias Aguiar (DF-TETA), conta com modernos centros de tratamento de cargas; completamente robotizada, utiliza supercomputadores de última geração capazes de identificar trilhões de operações por segundo, rastreando em tempo real o fluxo eletrônico de mercadorias em 50 mil km de estradas federais e estaduais. Para facilitar o trabalho dos robôs (é aqui que entra a invenção de Tobias Aguiar), a Divisão TETA conta com rastreadores acoplados às mercadorias, chips do tamanho de um alfinete que emitem ondas de RFID (Radio-Frequency Identification), mapeando qualquer desvio da carga que não chegar ao destinatário informado nos documentos eletrônicos. Os mafiosos que se cuidem.

NOIA é o acrônimo para Núcleo de Operações Internas e Adjacentes. Deslocando-se rapidamente em carros cor de abóbora, com seus giroflex de boate com a luz vermelha piscando, os agentes da NOIA conseguem chegar a qualquer ponto do estado apenas dois anos depois que o sonegador tiver emitido a última nota fiscal eletrônica. Definido o alvo, os agentes da NOIA fazem o maior arraso: copiam arquivos, apreendem computadores e carregam quilos e mais quilos de papéis, que serão rapidamente examinados na presença do cliente visando uma delação espontânea.

Entenda o esquema. O objetivo da operação era inocular o rastreador de radiofrequência nos suínos para acompanhar se os animais suculentos, mesmo depois de sistematizados, continuavam a circular pelas baladas sem documentos. Foram onze meses de investigação. A partir de regiões mapeadas pela Inteligência, cruzaram-se dados de aquisição de milho e de ração com o consumoper capita de carne suína. Agentes disfarçados de carregadores de sacos e outros fantasiados de suínos foram infiltrados nas pocilgas, desvendando um esquema milionário de sonegação, que por sinal era de um primarismo animal: oitenta e cinco por cento do abate de suínos era comercializado “na branca”, ou seja, os produtores e donos de frigoríficos não emitiam nota fiscal eletrônica. Constatou-se que os contribuintes de uma determinada região, cujo nome será mantido em sigilo, embarcavam as mercadorias de madrugada, quando os robôs da TETA estavam em manutenção, de forma que às seis da manhã os animais já se encontravam abatidos, limpos e fatiados, embalados e dependurados nos ganchos de açougues e supermercados (centenas de consumidores foram arrolados como cúmplices do esquema, por não exigirem o cupom fiscal no ato da compra).

Eram 04h22min da madrugada do dia 25 de março de 2015. A operação espírito de porco estava começando. Para evitar vazamento de informações, convocaram-se equipes de unidades situadas a 1,5 mil km dos alvos. Participaram da ação cerca de trinta e seis fiscais da TETA, mas o mérito por bravura ficou com dois servidores, veteranos da turma de 1982, que esperavam se aposentar somente aos 70 anos de idade. Munida apenas de papel e caneta, a dupla dominou a maior vara de porcos da região. Seus codinomes, que para sempre ficarão guardados na memória do Fisco, eram FCL e ASF 69.

FCL, o lendário Fiscal da Calça Listrada, tinha a estranha mania de se vestir somente com calças vagabundas, adquiridas em bancas de camelôs, cujas listras verticais convergiam para a região glútea. O segundo, ASF 69, o Agente Secreto, fiscal de inteligência rara, eraexpert em disfarces — é ele quem aparece no topo da reportagem, no momento em que estava sendo algemado por engano, mas isso não vem ao caso. O fato é que, embora FCL estivesse acostumado a mexer apenas com porcaria, nosso herói não se conformava com ter que abandonar o calor de sua alcova às quatro da madrugada. O objetivo específico da dupla: inocular com o chip de radiofrequência os porcos da Fazenda Santa Joaquina.

E lá se foram os dois bravos servidores do Erário. A noite estava tão fria e escura que do Agente Meia Nove, o rosto coberto com sua touca ninja, só se enxergavam os dentes. FCL, no banco do carona, roncava o seu ronco cavalar. Chegando à pocilga, antes que levassem um tiro de carabina, o Fiscal da Calça Listrada, tomando a dianteira, cautelosamente se identificou, relatando ao suinocultor as medidas fiscais a serem implementadas. Receptivo, o produtor rural, em que pese o avançado da hora — o que deixaria qualquer um de mau humor —, lhes recomendou: “Façam do chiqueiro a sua morada”.

Como as porcas estivessem dormindo, cada uma com cerca de vinte leitõezinhos acordados, mamando feitos senadores nas tetas do Erário, surgiu entre os dois agentes a primeira querela de natureza fiscal e tributária:

— Você trouxe o kit de radiofrequência? — perguntou 69.

— Putz, esqueci a maleta!

— E agora? O que você vai fazer? Não adianta ligar, aqui não pega celular.

— Merda! É o seguinte, façamos uma contagem de estoque, e depois avisamos o contribuinte para não realizar nenhuma saída até que os porcos estejam cadastrados no SISPORCO (sistema que monitora, por radiofrequência, o movimento de entrada e saídas de suínos através de um chip implantado no dorso do bicho). Com a assinatura do produtor no documento, teremos a posição do estoque. A gente volta à repartição, pega a maleta e conclui o serviço.

— Tá bem. Fazer o quê… Vem cá, teremos que contar todos, inclusive os porquinhos recém-nascidos? — inquiriu ASF 69.

— Positivo, inclusive os filhos das porcas que estão dormindo.

Dito e feito. Iniciaram a contagem pelo cercado das lactantes. Dividindo a tarefa, uma hora um deles ficava de lado, cercando e contando os porquinhos que buscavam abrigo debaixo da mamãe, enquanto o outro levantava a barriga da Landrace.

Quatrocentas e setenta e duas cabeças de porco depois, os diligentes agentes da Receita Estadual haviam contabilizado todos os integrantes do chiqueiro, assim distribuídos: 82 animais em fase de amamentação, 76 leitões recém-desmamados, 92 em fase de crescimento, 168 leitões prontos para o abate (terminação), 10 fêmeas gestantes, 14 fêmeas em lactação, 08 fêmeas vazias e 22 machos reprodutores.

Quando ASF 69 e seu ajudante da Calça Listrada chegaram à repartição, por volta das dez da manhã, exalando o autêntico perfume Suinel Nº 5, todos os demais integrantes da operação já haviam zarpado para suas unidades de origem. Assim que FCL apresentou o documento de contagem física, o Chefe questionou:

— O que é isso? A missão que eu lhes dei não foi essa! O objetivo de vocês dois era aplicar o marcador por radiofrequência.

— Calma, chefe, calma… É que o colega esqueceu a maleta, viemos pegar os apetrechos pra retornar ao local.

— Peraí! Eu? Eu esqueci a maleta? Eu não, meu caro; nós “esquecemos”…

— E por que vocês contaram as lactantes, os cachaços, as matrizes e os leitões em fase de amamentação? Nosso alvo era apenas os porcos para abate! Imbecis!

— Chefe, eu não entendo nada de porcaria. Quem decidiu contar a família inteira foi o meu colega — defendeu-se o Agente Secreto Fiscal.

Olhando para a cara do colega da Calça Listrada, na qual brotava um risinho cínico, ASF 69 percebeu que algo cheirava mal naquela história.

— Eu? Não decidi nada! Eu só estava te ajudando a carregar a prancheta! — respondeu o Fiscal da Calça Listrada.

Foi então que Meia Nove deu-se conta de que o parceiro o havia sacaneado, fazendo-o se misturar aos porcos mais tempo do que o necessário. Mas, antes que partisse pra briga, o da Calça Listrada arrematou:

— Deixa disso, colega, é melhor você ir para o hotel e tomar um bom banho. Esse fedor de chiqueiro pode fazer mal pra sua inteligência privilegiada.

NOTA DO AUTOR: esta é uma obra de ficção, exceto pelo que saiu nos noticiários; quanto ao resto, nem tudo é mentira.

chpeixoto@oi.com.br

ARTIGOS de CARLOS H. PEIXOTO

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