Antônio Sérgio Valente
Só falta algum poderoso de plantão dizer que a culpa pela poluição do Tietê é dos Beatles. Vá lá que até os anos sessenta o rio era limpo e navegável. Menino, morei no Canindé, defronte da Portuguesa. Algo que me parecia um lago nos separava do clube. As mulheres iam lavar roupas ali, numas tábuas com ondulações. Aos sábados, meu pai me levava, não sei se para ver as lavadeiras ajoelhadas, esfregando as roupas e falando de tudo, ou se para contar a história da ilha. Explicava que aquilo não era um lago, vem do rio, passa por aqui, vai por ali, ele apontava, lá do outro lado reencontra o Tietê — é um braço do rio no ombro da ilha. A história vinha na garupa.
Foi na ilha que ele e alguns dos meus tios nasceram. A Lusa comprou do São Paulo, que comprara do Deutsch Sportive, pois os clubes de imigrantes oriundos de países do Eixo, nossos inimigos, tiveram de adaptar-se a um decreto do Getúlio Vargas, alguns mudaram o nome, outros foram incorporados, o São Paulo engoliu o Deutsch. Mas bem antes dos alemães, no início do século, meu avô e outros portugueses ocuparam a ilha, tiraram areia do rio para construir a cidade, rebaixar a calha e diminuir a várzea. Tudo sem financiamento do BID, nem dinheiro público.
Depois da glória familiar, íamos à pinguela, para ver os barcos a remo e os nadadores. Competiam a Lusa, o Espéria, o Tietê, o Corinthians e muitos outros, inclusive o Pinheiros e a Hebraica, que eram de bem longe, eu nem imaginava de qual planeta. A água era limpa, verde, a não ser quando chovia. O passeio sempre terminava na venda do seu Amadeu, o mesmo que às quartas-feiras deixava a garotada da vila assistir ao Rim Tim Tim no televisor da casa dele. Meu pai pedia um aperitivo e, para mim, uma tubaína, um doce de leite, uma paçoquinha — era uma festa. Certa feita, perguntei-lhe por que barcos e nadadores subiam o rio, se era tão mais fácil descer. Foi então que ele me ensinou: nem sempre a correnteza nos leva para onde a gente quer, a lógica da vida exige músculos fortes, é preciso ir e voltar. Não entendi direito, perguntei se era como a lojica do seu Amadeu. Meu pai riu, não, era outra lógica, e despenteou os meus cabelos.
Então os cabeludos chegaram e por aqui foi uma brasa, mora. Políticos perseguidos se exilavam no Chile, nos Estados Unidos e na França, mas muitos enfrentaram a correnteza sem deixar o barco.
Mudamos de bairro, vieram as marginais e o braço no ombro da ilha foi aterrado. A cidade crescia e o pessoal de fora começou a voltar. Quando nos demos conta, os rios tinham virado esgoto a céu aberto. Bilhões de dólares de dejetos passaram a ser dragados. Na última década, inventaram uns chanfros nas margens, plantaram árvores e grama, enfeitaram a fedentina, mas a imundície continua entrando à vontade.
Cheguei a acreditar, ingênuo, que os da Sorbonne dariam um jeito. Afinal, flanaram nas margens do Sena durante o exílio, leram nos bancos do passeio rebaixado, entre a pista e o rio, sabem das galerias e do tratamento sob as vias laterais, ou será perderam o tempo por lá sem fazer o tour da Paris subterrânea? Pois os franceses comem e digerem como nós, a diferença é que, entre as tripas e o Sena, nas margens, sob as vias transitáveis, há dutos e redutos com cloro e outras químicas. Dei um desconto: deve custar bem mais caro, em vez do chanfro, pôr canais de captação até a metade da altura entre o rio e a pista, uma laje por cima, com floreiras, bancos, luminárias, alguns núcleos de comportas sob as marginais, como em Paris, para tratamento do esgoto.
Os do poder dizem que o problema é dos municípios da Grande São Paulo, como se o rio não fosse estadual, como se pouco antes da Penha não houvesse uma larga e extensa área suficiente para implantar uma estação de tratamento capaz de tornar a água do Tietê potável, e a partir dali seguir o exemplo de Paris, com captação lateral contínua e áreas de tratamento a cada dois quilômetros.
Porém, à vista dos recursos que vêm esbanjando nas últimas três décadas, jogando literalmente na draga os nossos tributos, sabe-se lá a troco de quantos por cento, devem imaginar que nos enganam ao agir como se fosse bem mais barato infestar o rio e depois dragar, eternamente. A população que tome uns antibióticos de vez em quando e tape o nariz ao passar por ali. Mas será que a lojica da vida é essa?
É que seria tão bom sentar num banco do passeio, ficar olhando a limpidez da água, namorados se beijando, turistas acenando dos catamarãs, remadores vencendo a correnteza, carros passando lá em cima, após uma fileira de árvores. Imagine os Beatles cantando Michelle em algum alto-falante, em homenagem ao Sena, e alguém contando a um futuro neto, entre a Girl e a Imagine, a história da ilha que não existe mais.
ARTIGOS de ANTONIO SÉRGIO VALENTE
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