Alexandro Afonso*
Em 02/03/2015 completo 5 anos de serviço público. Antes de me tornar servidor atuei por 10 anos consecutivos na iniciativa privada, sempre em áreas ligadas à engenharia mecânica. Neste artigo tenho a intenção de levantar uma questão que eu nunca vi ser tratada em nenhuma crítica à ineficiência do setor público: a questão da culpa e dolo. Ressalta-se desde o início de que não estamos tratando apenas sobre crimes, mas também sobre punições administrativas baseadas em erros cometidos por servidores. Não vou pormenorizar detalhes porque não sou especialista em direito, sou engenheiro. O termo “eficiência” é utilizado na concepção dos engenheiros.
Atuei por alguns anos na engenharia de produção de uma grande montadora. Vi por diversas vezes erros de operadores, erros de projeto e erros de engenheiros. Quando encontrávamos um erro qualquer a primeira coisa a se fazer era “arrumar o problema”, na linguagem de fábrica. Depois de consertado o defeito já era possível saber se houve dolo na conduta ou não. Se houve intenção do trabalhador em fazer acontecer o erro (sabotagem) ou não. Por óbvio, na maioria das vezes não havia intenção, era questão de mera culpa. Algumas vezes o dolo era indireto por desleixo, falta de profissionalismo ou mesmo falta de conhecimento (culpa consciente?). Nestes casos a decisão óbvia situava-se entre algumas soluções: treinamento, orientação, mudar o trabalhador de lugar (e tipo de trabalho) ou, em último caso, demitir, caso fosse custoso demais fazer aquele trabalhador parar de cometer os mesmos erros. Óbvio que este caso é muito pouco aplicado, eu não vi nenhum em 10 anos, as demissões que vi foram por baixo rendimento, nunca por um erro apenas culposo.
No serviço público a questão toma forma completamente diferente. Tudo por aqui vai parar no judiciário. A principal preocupação de qualquer servidor é ser processado por um cidadão, por outro servidor, pela administração ou mesmo pelo poder a que pertence (executivo, legislativo ou judiciário).
É consenso entre os servidores que basta haver culpa para a punição ser aplicável. Logo, pouco importa se houve intenção, se houve desleixo, stress alto, se o servidor não dormiu bem, se foi assediado moralmente para adotar determinada conduta, se isto ou aquilo. Pouco importa! Teve culpa? É culpado e deve pagar. A lógica parece bem simples, mas não é. Não vamos entrar em detalhes do judiciário como a questão de cada juiz decidir de forma diferente em alguns assuntos. Fiquemos no “princípio da supremacia do interesse público”. O Estado não pode perder nunca, então quem teve culpa (servidor) deve pagar e ponto final. Ledo engano, o Estado perde muito com esta conduta.
À primeira vista o “princípio da supremacia do interesse público” aplicado ao trabalho dos servidores parece algo correto e que traria “responsabilidade” ou “comprometimento” ou outro termo bonito como esses. “SÓ QUE NÃO”. Explico: não há um ser humano neste mundo que nunca tenha cometido um erro. Não há um que não cometerá um erro. Errar é inerente ao processo de aprendizado. Depois de aprendida a lição, fatores mil levam o melhor profissional a cometer pequenos erros. Ao punir qualquer erro considerando unicamente a culpa o sistema jurídico brasileiro implanta no núcleo do Serviço Público a ineficiência.
O servidor, sabedor de que a mera culpa o prejudica (no Brasil um simples processo já é a própria punição, psicológica no caso), passa por volta de 80% do seu tempo constituindo provas de que fez a coisa certa. A burocracia passa a ser tão amada pelos servidores que critica-la é quase um ataque à própria pessoa. Isto, obviamente, impede qualquer trabalho de ser eficiente. Afinal, apenas um quinto do tempo será utilizado para fazer o trabalho. Exemplos eu tenho muitos, mas vou citar apenas um: juntar impressos de telas de sistemas mantidos pelo próprio órgão. Oras, bastaria que o servidor olhasse os sistemas e se certificasse que está correto, não? A assinatura dele deveria receber alguma confiança. Afinal, por qual motivo, razão ou circunstância seria imprescindível juntar o impresso de uma tela de consulta em um sistema do próprio órgão que o mantém, o mesmo órgão do servidor, no processo? Oras, o sistema não é mantido pelo órgão? As informações dele não são confiáveis no tempo? Se este for o caso o problema é outro.
A resposta dos profissionais mais experientes do serviço público para esta questão é simples: faça como quiser, mas eu colocaria o impresso para “ninguém poder dizer que eu não olhei”. Glória! Atingimos o pico da eficiência: provar que olhou. Você, leitor, acha que eu tenho uma resposta diferente? Não, meus caros. Junte impressos para provar que você fez a coisa certa. O sistema é implacável e basta um processo com um Juiz que tenha a opinião de que basta a mera culpa para você sair prejudicado. Aliás, só o processo administrativo ou judicial já vai te dar uma dor de cabeça que pode ser aliviada com estas “provas de que fez a coisa certa”.
Este fator nos leva a um paradoxo bem interessante. Os profissionais que mais trabalham se tornam os piores porque serão, estatisticamente, os que mais erram. E os profissionais que não executam nenhuma atividade, ou próximo a nada, nunca serão punidos porque não cometerão nenhum erro. Qual a razão de incentivar esta lógica? Há que se reclamar dos “moitas” que se formam no Serviço Público? Por quê? Considerando que o ser humano é egoísta por natureza, o “moita” estará unicamente buscando seus interesses pessoais. Mas é isto que queremos incentivar no serviço público?
Um amigo me disse uma vez que educar é incentivar o bom comportamento e punir o mau comportamento para mostrar que não é certo. Isto é muito óbvio. No serviço público a lógica pode ser diretamente aplicada. Se desejamos eficiência devemos incentivar quem agrega mais valor e não punir aquele que trabalhou muito e, por óbvio, teve maior chance de cometer um erro sem a intenção de fazê-lo.
Devemos punir aqueles que agem com dolo, com intenção de ter vantagens indevidas, quem faz advocacia administrativa, aqueles que são corruptos, os que “passam na frente” interessados “mais interessados” que outros interessados, etc. Se todas as corregedorias dos órgãos, o ministério público, as corregedorias gerias e outros órgão de fiscalização das atividades de servidores se concentrarem apenas nos casos em que há dolo, certamente haverá trabalho sobrando para servidores faltando porque normalmente as corregedorias são pequenas.
Infelizmente a solução neste caso é algo que beira o utópico. Seria necessária legislação específica tratando sobre erros cometidos por servidores em que ficasse bem claro que a mera culpa não é nem punível (eu digo punição zero mesmo) nem passível de abertura de processo administrativo e que seria necessário, imprescindível, a comprovação de dolo já para a abertura do PA. Os servidores precisam ter segurança e acreditar que caso cometam um erro não intencional em seu trabalho estarão protegidos pela lei contra punições ou algum tipo de assédio moral. Como isto é altamente improvável, mesmo porque essa discussão não existe na sociedade atualmente, temos que o Serviço Público está fadado à ineficiência por suas próprias regras e características.
Para conforto do leitor, há um alento. Quando se implantam sistemas para tratar de determinados trabalhos a questão da culpa é completamente retirada do foco. Afinal, “foi o sistema que errou” e o sistema não é um servidor. Uma solução seria desenvolver sistemas para tudo aquilo que é passível de ser resumido em um roteiro (tarefas algorítmicas). Os seres humanos, dotados de inteligência, podemos deixar para as tarefas heurísticas, para o desenvolvimento destes próprios sistemas e para os casos de exceção que sempre existirão.
Por fim, estou certo que a culpa de um dos mais importantes fatores que determinam a ineficiência do setor público é a própria culpa. A solução é “tornar culpado apenas o dolo”. Resumindo: a culpa é da culpa, mas deveria ser do dolo.
Se eu estiver errado serei a pessoa mais feliz do mundo, neste caso me avise.
No próximo artigo pretendo tratar de outro ponto de ineficiência tão importante quanto este: gargalos criados “por competência” em leis e decretos.
* Alexandro Afonso é Agente Fiscal de Rendas do Estado de São Paulo
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