João estava conversando com um colega, assistente do delegado, conhecido pelo pessoal do futebol como Mão (de alface) e ouviu: “já fui bombeiro, fiscal em outro Estado, mas nunca, em 30 anos de serviço público eu vivi uma fase de tamanha desmotivação” “pela primeira vez na minha vida eu acordo e penso: tenho mesmo que ir pra aquela M…?!”.
“Mão, você viu a reunião do Secretário com a Afresp? Ele disse que PR não é salário e, por isso, não vai pagar.”
“É engraçado isso: PR não é salário! Chame de salário, remuneração, bônus, Pokémon rosa, tanto faz! Está na Lei, tem que pagar! Ora, jeton também não é salário. Pergunte a ele se o dele está atrasado!”
“É um desrespeito com o profissional, com ser humano, não é?!” Disse João.
“João, nós somos desrespeitados o tempo todo. Somos desrespeitados quando nos colocam para encher garrafinha de combustível, entregar cartinha do MP, fazer operação “bonecão de posto”. Somos desrespeitados quando nos colocam para desempenhar atividades que os sistemas deveriam fazer sozinhos. Somos desrespeitados quando vemos a revista Veja fazer uma matéria um ano depois de um escândalo de corrupção e a Corregedoria ainda não concluiu nenhum processo. Somos desrespeitados quando o Sindicato faz uma denúncia de existência de funcionários fantasmas e a administração sequer manda para a Corregedoria. Somos desrespeitados quando implantam um sistema remuneratório baseado na meritocracia e no final de julho ainda não foram divulgadas as metas para o ano.” “Isso mexe com o brio de cada um de nós!” “Me admira nossos colegas ocupantes de cargos de gestão não sentirem essa ferida narcísica! Como podem estar empossados em um cargo de direção de uma instituição tão importante, tratada com essa falta de respeito, e não se revoltarem?”
“Mas João, mudando de assunto, você já descobriu um lugar para desempenhar uma tarefa na qual você se realize profissionalmente, aqui na Sefaz?” Já tentou o NFC?
“Ainda não, Mão. Estou na FDT, desanimado. Já conversei com o pessoal do ITCMD e do e-cred rural, mas ainda não encontrei o que estou procurando. Parece que todos nós desempenhamos atividades meramente braçais. A Sefaz se tornou um grande cemitério de mentes brilhantes. Profissionais com currículos invejáveis desenvolvendo atividades de baixíssimo valor agregado.”
“E um cemitério de motivação também, João. Mas me dê licença que tenho que sair correndo para o almoço, hoje. Meu colchão está muito velho e rasgado e tem uma loja dando 50% de desconto no colchão novo, se entregar um usado em boas condições. Como meu não está em boas condições, comprei um na OLX, tenho que ir buscar. Com 50% de desconto, parcelando em 10 vezes no cartão, acho que dá pra comprar…”
“Boa sorte lá, Mão!” “Como diria um famoso locutor de futebol: Que fase!”
“NFC – Núcleo Fiscal de Cobrança… Não havia pensado nisso! Acho que vou passar por lá e conversar um pouco, mas não sei não, não gosto muito de telefone e lá, dizem que usam muito…”
Na verdade, João detestava telefone. Ele costumava dizer que se Graham Bell tivesse precedido Dante, a Divina Comédia traria na parte do Inferno, dez ciclos de sofrimento. Um seria exclusivo para atendentes de telemarketing.
Depois do almoço, João resolveu passar pelo NFC e foi falar com Judite.
Judite era AFR. Uma morena forte que falava alto (alguns diziam que ela havia sido criada ao lado de uma cachoeira). Era formada em Ciências Contábeis na USP, com pós-graduação em Direito Empresarial e Planejamento Tributário.
“Salve, Judite! Como vai?”
“Bom dia, senhor João! Em que posso estar ajudando?”
João fez uma cara de assustado e perguntou: “Por que você está falando assim?”
“Assim como, João? É meu jeito de falar. Força do hábito!”
“Bom, resolvi dar uma passadinha por aqui para falar com você sobre o serviço aqui no NFC, estou procurando uma atividade com a qual me identifique… Podemos conversar?”
“Claro, João! Sua visita é muito importante para nós! Aguarde um momento que já te atendo!”
“Eu, heim!” Pensou João. “Poderia ter colocado um solinho de flauta.” Dez minutos depois, Judite falou:
“Sobre o quê, exatamente, nós vamos estar conversando, senhor? Digo, João.”
“Eu gostaria de conhecer um pouco do serviço que vocês realizam aqui, Judite.”
“Bom, João, depois que os débitos lançados de ofício são definitivamente constituídos na esfera administrativa eles são enviados para cá onde estaremos fazendo a cobrança administrativa. Essa cobrança consiste em estar telefonando para o contribuinte e estar lembrando-o do débito, também estar alertando sobre a iminência de inscrição em Dívida Ativa e estar oferecendo as possibilidades de parcelamento.”
“E isso dá certo, Judite? Quer dizer, esse tipo de cobrança funciona?”
“Já funcionou mais, João, mas como a execução fiscal é muito ruim e muito lenta, ninguém tem medo de inscrição em dívida ativa e como todos os anos têm um parcelamento especial, do tipo PEP, PPD, etc. os contribuintes já falam na nossa cara: “Não vou pagar nada, não! Quando vai sair um parcelamento daqueles em que a gente não paga multa e juros?”
“E então, Judite, o que mais você faz?”
“Nós corrigimos as contas fiscais dos AIIMs, quando são reduzidos em fase de julgamento e também corrigimos os “bugs” que aparecem nos demais sistemas de conta fiscal além de documentos de arrecadação que foram recolhidos com erro.”
“E quando o contribuinte não paga os débitos, vocês enviam para a Procuradoria fazer a inscrição, certo?”
“Não!”
“Como não? JU-DI-TE!”
“Tava demorando, né, João! Tá se achando o Fábio Porchat, né! Acha que eu não sofro bulling o suficiente por causa disso?”
“Foi mal, Judite! Se vocês não “vão estar mandando” para a Procuradoria o que vocês “vão estar fazendo”?”
“Tem um decreto que delega a atividade de inscrição de débitos para cada órgão onde o débito surgiu, então nós mesmos vamos estar fazendo a inscrição desses débitos em dívida ativa” “Mas não acaba aí. O TJ não faz as inscrições de custas judiciais e multas penais, então a Procuradoria que deveria estar fazendo. Como a Procuradoria não aceita fazer serviços de peão, eles mandam pra gente e nós fazemos.”
“Como o pessoal da administração aceita que editem uma norma transferindo a competência de inscrição do TJ, ou da Procuradoria, pra gente? Que absurdo, não?!”
“Que norma, João?”
“Judite, a norma que diz que nós é que temos que fazer a inscrição dos débitos de custas processuais e multas penais.”
“Não tem isso não, João! Não tem norma nenhuma… Não sei se você ficou sabendo da reunião do Secretário com a AFRESP, mas deu pra perceber que o pessoal lá não liga muito pra norma, não!”
“Judite, já entendi o que vocês fazem, mas me responda uma pergunta: Por que, raios, tem que ser um Fiscal para fazer esse serviço?”
“Espera aí, João, que o telefone está tocando… Núcleo Fiscal de Cobrança, em que posso estar ajudando?” A ligação caiu e Judite olhou para a cadeira à sua frente, que estava vazia… João já tinha ido embora (o mais rápido que conseguiu), deixando Judite ouvindo sinal de ocupado:
“tutututututututututututututu”
–
Essa está sendo uma história de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real estará sendo mera coincidência.
–
* Agente Fiscal de Rendas – SP, formado em Letras pela Unesp e em Ciências Contábeis pela Universidade Católica Dom Bosco
–
NOTA: O BLOG do AFR é um foro de debates. Não tem opinião oficial ou oficiosa sobre qualquer tema em foco.
Artigos e comentários aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores.